SOBRE O RECENTE DECRETO-LEI DITO “LEI DA CIÊNCIA”
O Decreto do XXI Governo Constitucional (António Costa, Manuel Heitor) publicado em 16 de Maio último (Diário da República, 1.ª série — N.º 94) é conhecido como “Lei da Ciência” — inesperada promoção de um diploma legislativo a uma categoria reservada nos termos constitucionais a diplomas dimanados do Parlamento. O processo tem início com a aprovação em Conselho de Ministros do Projecto PL 51/2018, de 15 de Fevereiro com a indicação de ser submetido a consulta pública até 31 de Março (https://www.portugal.gov.pt/pt/gc21/consulta-publica?i=237). O Projecto é significativamente diferente do diploma que veio a ser publicado (https://www.portugal.gov.pt/download-ficheiros/ficheiro.aspx?v=86d28c65-66ae-433e-887b-8c0e1b8093a5). Efectivamente enquanto o Projecto se estendia ao longo de 62 artigos, a “Lei da Ciência” limita-se a 49.
São pois textos qualitativamente diferentes na sua abrangência e âmbito de aplicação, sendo difícil admitir que tal tenha sido consequência de opiniões, sugestões e contributos do “público” e não de questões nascidas no interior do próprio governo e da máquina administrativa em que se apoia. Aliás, salvo melhor opinião, no nosso estado dito de direito é residual a eficácia do instrumento da “consulta pública” de que o governo entende servir-se de vez em quando.
Mas, adiante.
A impressão geral que deixa ao leitor atento e informado, razoavelmente conhecedor da profusão de textos legislativos que nas últimas décadas, de há quarenta anos a esta parte, vêm procurando regulamentar a estrutura, organização e condições de funcionamento do Sistema Científico e Técnico Nacional; as condições de trabalho e o sucesso profissional dos seus agentes, sejam eles investigadores, pessoal técnico de apoio à investigação ou operário especializado — grupos que merecem atenção em qualquer país medianamente desenvolvido — poderá levar esse leitor a concluir que a linha geral das políticas seguidas não mostra, no plano qualitativo, sinais de ruptura significativos com uma tradição que consiste em substituir acções necessárias por promessas vãs. Promessas vãs em geral formuladas num português deficiente ou intratável “legalês”. Os comportamentos de quem, de facto, tem poder, aos mais diversos níveis, e os interesses que privilegia, são, com honrosas excepções, o primeiro e decisivo obstáculo que se levanta no caminho para a resolução, faseada embora mas efectiva, dos problemas que se colocam ao desejável progresso do Sistema.
Esta “Lei da Ciência” é um bom exemplo disto mesmo.
Diversas fontes em diversas oportunidades têm feito notar aquelas que são em nosso entender as distorções mais evidentes que se manifestam no Sistema Científico e Técnico Nacional, postas a nu pelos indicadores mais correntemente usados entre nós e lá fora para caracterizar a situação do Sistema. A saber: o subfinanciamento, por um lado, e, por outro, o rácio “número de investigadores ETI/número de efectivos de pessoal não investigador ETI activo no Sistema”. O subfinanciamento exprime-se em percentagem do Produto Interno Bruto e na despesa com I&D per capita de investigador ETI. Outras distorções não menos sérias revelam-se numa análise mais apurada de dados estatísticos disponíveis. Referimo-nos à percentagem de pessoal de I&D em situação de emprego precário, investigadores e não investigadores, e à distribuição etária do pessoal activo.
Dir-se-á que a “Lei da Ciência” está focada na regulamentação da estrutura, organização e condições de funcionamento do Sistema Científico e Técnico Nacional. Será assim realmente, e nesse aspecto pode dizer-se que o faz em moldes passíveis de controvérsia ou se se quiser com excessivo pormenor, criando uma floresta, para não dizer uma intrincada selva de instituições, unidades, organismos e entidades tão ligadas ou tão desligadas umas das outras e tão dependentes na sua gestão de poderes alheios que o mais experiente maestro sentado nas cadeiras do poder, terá dificuldade em gerir um tal sistema salvo se dispuser de mandaretes licenciados para o efeito. Na descrição do emaranhado de “entidades, estruturas e redes dedicadas à produção, difusão e transmissão do conhecimento”, referem-se “unidades de I&D” mais adiante qualificadas como a “base da organização do sistema científico e tecnológico nacional” (Art.º 16º). Esta “base” rapidamente se esfuma pois nada se adianta sobre ela no articulado do decreto. Nem atribuições, nem objectivos e competências, nem enquadramento institucional. Há todavia uma passagem no artigo imediatamente anterior (Art.º 15º) que poderá levantar uma ponta do véu ao dispor que “(a) aplicação do regime previsto no presente decreto-lei aos laboratórios do Estado e às instituições de ensino superior faz -se no respeito pela sua autonomia legal e constitucionalmente prevista”. Instituições de ensino superior? A que propósito? Diga quem souber.
Todas as distorções que acima se referiram passam à margem desta “Lei”. Na verdade uma “Lei” assim é o mais fácil de fazer e talvez o menos útil. Difícil é, no quadro em que os actuais governantes alegremente navegam e outros antes deles navegaram, resolver o problema do subfinanciamento, substituir emprego precário por emprego com direitos, proceder ao indispensável recrutamento de pessoal técnico e operário.
Não parece que a nova “Lei” vá de algum modo contribuir para tal.
De resto, no essencial, o problema não está na “Lei”, cuja elaborada arquitectura não deixa aliás de gerar alguma perplexidade. O problema está nos pressupostos que lhe subjazem e na prática que se lhe seguirá. E aí é difícil que gere expectativas de efectiva superação das dificuldades sentidas pela generalidade da comunidade científica. A nova “Lei” apresenta-se inequivocamente como sucessora do Decreto-Lei n.º 125/99, do ministro Mariano Gago, que é agora expressamente revogado. Na verdade nada de verdadeiramente substancial parece separar os dois diplomas, o que vigorava até aqui e este, aparte a já referida elaborada arquitectura da nova “Lei” que em vez de 32 se desdobra agora por 49 artigos, sublinhando a cada passo a irreprimível tentação de mostrar uma nova modernidade a que, entretanto e sem surpresa, escapa a oportunidade de finalmente remeter para o “caixote de lixo da história” o Estatuto do Bolseiro de Investigação.
A “modernidade” nota-se agora explicitamente na referência ao propósito de seguir “as melhores práticas internacionais” que aparece no Preâmbulo do decreto e, por quatro vezes, em quatro diferentes artigos da “Lei”! Será uma dessas “melhores práticas” a adopção da Carta Europeia do Investigador e do Código de Conduta para o Recrutamento de Investigadores?
Veremos.
Entretanto logo no preâmbulo encontramos as habituais pérolas que as sucessivas tutelas da Ciência vêm desgastando. Um exemplo (citação): ”
“Estimular a adopção de práticas e processos abertos de criação, partilha e utilização do conhecimento científico pelas instituições de I&D, nos termos dos princípios que fundamentam as estratégias de «Ciência Aberta» e «Direito à Ciência», designadamente em termos de acesso e participação.”
Merece alvíssaras o mensageiro que nos explique o sentido e a novidade desta formulação.
Até no capítulo das “definições” (Art.º 2º) onde não se esperaria encontrar qualquer estranheza, investigação fundamental aparece definida como “actividades de investigação derivadas da curiosidade científica”; e investigadores são identificados de forma sui generis como “profissionais que trabalham na concepção ou na criação de novos conhecimentos”.
No que respeita à designação dos titulares de cargos dirigentes nada de verdadeiramente significativo é alterado nesta “Lei” relativamente ao decreto que antes vigorava. Esta não é uma questão de pormenor mas algo que importa examinar com cuidado pois a experiência mostra que, com alguma frequência, o comportamento das pessoas nomeadas ou designadas para cargos dirigentes tem efeitos nefastos sobre a vida das instituições.
A comunidade científica em geral e muitos dos seus membros mais directamente envolvidos nos chamados processos de “avaliação” de unidades, centros ou laboratórios de investigação, recordarão com desgosto e alguma revolta os resultados da famosa avaliação das instituições de investigação que se desenrolou entre 2013 e 2015.
Realmente o problema não está lei. Não foi o teor das disposições previstas na lei anterior que preveniu o descalabro e não será certamente o dos preceitos previstos na nova “Lei”, no essencial semelhantes àquelas.
O que adianta então substituir uma lei por outra quando as verdadeiras questões e os vícios de que padece o aparelho de gestão burocrático-administrativo do sistema de Ciência e Tecnologia e a sua direcção política, permanecem? Quando não se propõe qualquer antídoto sistémico à aparentemente irreformável Fundação para a Ciência e a Tecnologia? Quando não se esboça sequer o propósito de construir uma política nacional de Ciência e uma estratégia orientadora da actividade das instituições de I&D? Não será com certeza de um reanimado Conselho Superior de Ciência e Tecnologia (agora também de Inovação), de triste memória, que poderão esperar-se passos decisivos nessa direcção. Conselho no qual as “unidades de I&D”, “base da organização do sistema científico e tecnológico Nacional” não estão sequer representadas.
Há no entanto uma novidade nesta “Lei da Ciência”: a inserção no decreto de um artigo que chama as instituições de I&D “a contribuir para a difusão internacional da língua portuguesa como língua de trabalho em ciência (…) nomeadamente através do apoio à formação avançada de investigadores no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa”. O propósito aqui traduzido prende-se com a iniciativa, já com alguns anos, do lançamento de um “Plano Estratégico de Cooperação Multilateral no Domínio da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior da CPLP” cujo Plano de Acção abrange o período 204-2020. Salvo melhor opinião, esta iniciativa não parece ter tido a divulgação que mereceria no seio da comunidade científica nacional. De resto já no próprio preâmbulo do decreto figura como um objectivo, algo ambicioso e inesperado, “ (…) a formação avançada de cientistas em língua portuguesa (…) ”.
O papel do Estado no domínio da “observação e registo de dados sobre ciência e tecnologia” é também destacado no preâmbulo do decreto. Esta questão merece especial atenção desde logo pela importância de que se reveste como instrumento útil a qualquer reflexão sobre orientações a adoptar na elaboração de uma política de ciência e nas estratégias de desenvolvimento a seguir. Convém observar que o que vem sendo feito até aqui é insuficiente quer no que toca ao levantamento estatístico de dados quer no que respeita à divulgação de resultados dos levantamentos. Efectivamente, a recolha de dados, depois divulgados nos inquéritos ao potencial científico e tecnológico nacional, actualmente da responsabilidade da DGEEC, não parece ser objecto de controlo suficientemente rigoroso ou mesmo de qualquer controlo, por parte da entidade inquiridora. Esta circunstância vai afectar seriamente a credibilidade dos dados divulgados, designadamente no que respeita a actividades de I&D supostamente executadas no sector das empresas.
Por outro lado, subsiste uma antiga lacuna: a não inclusão no recenseamento e na recolha de informação, das instituições que executam “outras actividades científicas e técnicas” (OAC&T) definidas no Manual de Frascati. Trata-se de actividades em muitos casos de decisiva importância para a boa execução e o sucesso do trabalho de investigação e desenvolvimento como, a título de exemplo, “o registo corrente de temperaturas e pressões atmosféricas, enquanto operação rotineiramente executada por um organismo de previsão meteorológica” (Frascati).
Em conclusão e usando uma expressão popular: trata-se mais uma vez de “tapar o sol com uma peneira” trocando uma lei menos má por uma lei medíocre de cuja aplicação não deverá esperar-se que venha a resolver ou sequer contribuir para a resolução dos sérios vícios e problemas que afectam o Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia.
A Direcção
18 de Julho de 2019