“No âmbito da ciência e tecnologia, o objectivo do Governo é consolidar a aposta no conhecimento, fomentando o conhecimento científico de forma “aberta” e “para todos”, como actividade humana essencial,estimulada pela curiosidade, por práticas de observação e pela formulação de hipóteses, em contextos formais e não formais de educação, assim como reforçando sistematicamente o potencial humano e o emprego científico em todas as áreas do saber, e garantindo um quadro claro de avaliação, financiamento e regulação das instituições de ciência e tecnologia”
(“Grandes Opções do Plano para 2017”)
Lá como Cá
Recentemente, o El País, na sua edição de 17 de Dezembro de 2017, publicou um artigo de Nuño Domínguez intitulado “El colapso de la ciência en España” [1], no qual se faz um retrato da situação do investimento público na investigação científica, do aumento da carga burocrática e da incerteza laboral no sistema de ciência em Espanha. O artigo revela uma redução de cerca de 9% do investimento em ciência desde 2019 e salienta os níveis elevados de precariedade dos investigadores.
A situação insustentável da precariedade e a galopante burocracia nas instituições de investigação em Espanha foi-nos reafirmada pelo Prof. Elies Molins investigador no ICMAB-CSIC (Institut de Ciència de Materials de Barcelona, Consejo Superior de Investigaciones Científicas) que é membro do Secretariado Internacional da WFSW (World Federation of Scientific Workers).
Manifestação contra os cortes na cência e na investigação científica, na Gran Via de Madrid
Tal como em Espanha o desinvestimento na Ciência em Portugal nos últimos 6 anos é devastador. A deriva de políticas científicas acompanhada por uma catastrófica política de recursos humanos e pelos cortes brutais de orçamento durante o período de intervenção da troika atinge hoje proporções, que ultrapassam as análises mais pessimistas que se foram fazendo ao longo da última década.
Em Portugal, o investimento em I&D em % do PIB caiu 17%, de 2010 a 2016, enquanto que a tendência da EU (total dos 28 estados membros) continua a ser positiva, embora tenha abrandado nos últimos 5 anos[2].
Tal como em Espanha a quebra do investimento público reflectiu-se no funcionamento das instituições. A irregularidade e o sub-financiamento das instituições, os procedimentos administrativos cada vez mais complicados e complexos levaram, nos últimos anos, à perda de competitividade de muitas unidades de investigação relativamente a parceiros Europeus, a uma baixa taxa de produtividade e ainda a modestos índices de impacto (12º lugar no ranking Europeu em número de publicações e 16º lugar em índice de impacto dessas publicações [3]).
A invasão do trabalho precário nas instituições públicas a realizar I&D atingiu proporções avassaladoras. Os números da precariedade no tecido de I&D nacional, ou seja nas universidades, nos Laboratórios de Estado e nos institutos de investigação, não se encontram totalmente avaliados. Estima-se que o número de investigadores que não têm um contrato de trabalho possa ultrapassar os 30% do total de investigadores no país, que segundo o INE, em 2016 eram aproximadamente 40 000. Tal como em Espanha não existem estudos estatísticos sobre o número de bolseiros em actividades de I&D em Portugal e no estrangeiro. Nos últimos 15 anos doutoraram-se em Portugal cerca de 20 000 pessoas, a maior parte ao abrigo de programas de atribuição de bolsas da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Mas destes 20 000 novos doutorados apenas uma pequena percentagem terá sido inserida nas instituições públicas (estado, universidades e politécnicos) e nas empresas com contratos de trabalho. A grande maioria desta geração altamente qualificada continua a viver de bolsas sem subsídios sociais, de desemprego, férias, doença ou maternidade, e com um nível salarial baixo. Acresce que para as mesmas qualificações, deparamo-nos actualmente com profundas disparidades devido à proliferação de situações, que vão desde bolsas de Pós-doutoramento, bolsas de Gestão de Ciência e Tecnologia a contratos a termo FCT. Durante os anos negros da troika os números do INE apontam para um decréscimo do número total de investigadores em Portugal de aproximadamente 25%. Contribuíram, por certo, para este decréscimo, o abandono de muitos doutorados que não viram as suas bolsas renovadas e outros que decidiram emigrar em busca de uma vida laboral mais estável. Nos últimos dois anos houve uma recuperação do número de investigadores muito provavelmente à custa de vínculos precários. De facto, a manutenção destes investigadores numa situação de precariedade é um enorme desperdício para a sociedade. É um desperdício dos investimentos feitos por todos os Portugueses. É um desperdício de recursos em termos de competências adquiridas, dado muitos destes bolseiros estarem efectivamente a desempenhar funções essenciais nas instituições há muitos anos, ajudando a gerar potencial para abarcar e resolver novos desafios. É um desperdício para a estabilidade necessária nas instituições cientificas de modo a assegurar uma eficaz transmissão de conhecimento na passagem geracional, cada vez mais comprometida.
Será no entanto injusto dizer que o país não beneficiou com o aumento de uma população mais diferenciada e qualificada. De facto, criámos a geração mais qualificada e mais bem preparada tecnicamente de sempre. Pena é, que as instituições públicas e as empresas não tivessem evoluído ao mesmo ritmo. É urgente que o sistema governamental e empresarial nacional reconheça o impacto positivo que a contratação de recursos humanos qualificados pode introduzir na sua capacidade tecnológica e na inovação, beneficiando deste salto enorme em conhecimento que o país conseguiu dar.
[1]https://elpais.com/elpais/2017/12/15/ciencia/1513339555_913991.html
[2] Inquérito ao potencial científico e tecnológico nacional, Direcção Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC), 2010 a 2017 (http://www.dgeec.mec.pt)
[3]Dados retirados de http://www.scimagojr.com.