Os Cientistas, os Políticos e o Mundo
“Na preocupação com o homem e o seu destino deve sempre assentar o principal interesse de todos os empreendimentos técnicos. Nunca o esqueça no meio dos seus diagramas e equações.”
Albert Einstein
Não é sem fundamento que a conceituada revista científica “Nature” em editorial publicado há cerca de um ano sob o título “Os peritos devem exigir ser ouvidos“, considera que “num certo número de democracias” as relações entre académicos e políticos se vêm deteriorando, e acrescenta que, em toda a parte, os investigadores devem combater a percepção de que “não merecem confiança” ou que “os cientistas estão de algum modo à margem do conjunto da população”. Em subtítulo do Editorial a que nos referimos, os autores escrevem: “Os académicos, no seu conjunto, sentem estar colocados numa posição desconfortável perante os políticos. Deveriam procurar inspiração nos cientistas que nos anos 50 fizeram soar o alarme contra as armas nucleares (,) ”[1]. Ao longo dos anos foram-se multiplicando os exemplos da intervenção de cientistas junto dos poderes políticos, mas também do público em geral, em defesa de valores fundamentais da vida em sociedade e da natureza que a sustenta. Este é um papel que cabe aos cientistas. Os decisores políticos têm a obrigação de os ouvir. Entre muitos outros, lembremos os exemplos de Albert Einstein, Joliot-Curie ou Joseph Rotblat, laureados com o prémio Nobel. Agiram e inspiraram a acção dos seus contemporâneos.
Encontram-se em todos os domínios do conhecimento trabalhadores científicos, mulheres e homens de ciência, conscientes da responsabilidade social que lhes cabe perante os seus concidadãos, por força dos conhecimentos e treino específico que possuem. Isto acontece nas ciências fundamentais, puras ou aplicadas, como acontece nas ciências sociais e humanas, porventura até com mais destaque do que naquelas, na economia política ou na filosofia. No mundo das artes e da cultura igualmente se manifesta essa consciência social que está longe de ser exclusivo dos cientistas, e se orienta afinal, em todos os casos, no mesmo sentido: a defesa de um mundo a salvo das contradições de uma organização social que se mostra incapaz de prover às necessidades mais básicas da Humanidade e contribui para o acumular de nuvens escuras sobre o futuro das gerações vindouras.
As desigualdades na distribuição da riqueza criada pelo trabalho produtivo vêm-se acentuando progressivamente desde meados do século passado. Trata-se de um fenómeno que se manifesta a nível global, entre países, regiões ou continentes, mas também no interior de cada país. A desigualdade, neste aspecto, entre o continente africano e a Europa, por exemplo, é manifesta e atinge extremos intoleráveis. Não obstante, há africanos milionários e encontram-se em África exemplos de concentração de riqueza em grupos privilegiados. Por outro lado, em países ricos do continente europeu ou da América do Norte, mas também em países asiáticos, há largas manchas de pobreza, sobretudo em áreas metropolitanas, em que a decadência humana e material é igualmente intolerável.
A manutenção, senão o agravamento, destas desigualdades é incompatível com o sucesso possível do combate aos grandes flagelos e ameaças, naturais ou fruto da acção humana, de que depende a sustentabilidade futura da vida sobre a Terra. A “Agenda 2030 para um Desenvolvimento Sustentável”, unanimemente adoptada pelos Estados membros das Nações Unidas em 2015, enumera um conjunto de 17 objectivos a atingir em 15 anos e um plano para lá chegar. A “redução” das desigualdades entre países e no interior de cada país é um dos objectivos propostos, a par da eliminação da pobreza e da fome, entre outros de importância semelhante[2].
Hoje, 5 anos passados, verificam-se infelizmente, no geral, recuos em lugar de avanços no sentido desejado. Recuos em lugar de progressos. Não se acredita que a situação possa alterar-se sem uma mudança radical dos equilíbrios de forças e de jogos de interesses que condicionam ou mesmo contrariam as saídas possíveis para a situação que vivemos.
Ninguém pensará, por exemplo, que se possa lá chegar num quadro de multiplicação de conflitos militares, mais ou menos confinados, em regiões mais pobres, mas alimentados por uma poderosa e lucrativa indústria do armamento que particularmente interessa a países poderosos. E não serão os apelos louváveis e mais ou menos eloquentes, seja de um Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas ou de um Papa Francisco, figuras estimáveis mas sem efectivo poder, que poderão ser contrapeso suficiente àqueles interesses.
No discurso que proferiu em Julho último na chamada “Lição Anual Nelson Mandela”, António Guterres afirmou: “A desigualdade define o nosso tempo”[3]. Desmontando liminarmente algumas falácias perigosas que circulam, lembrou o efeito clarificador da pandemia COVID-19 como radiografia “reveladora de fracturas no frágil esqueleto das sociedades que temos construído”. Tristemente, a pandemia tem o mérito de expor — citamos — “falácias e falsidades por toda a parte. A mentira de que o livre mercado pode permitir alargar a todos os cuidados de saúde. A ficção que cuidados de saúde voluntários não são trabalho. A ilusão de que vivemos num mundo pós-racista. O mito de que estamos todos no mesmo barco”. E acrescenta; “porque se todos navegamos nas mesmas águas, é claro que alguns de nós o fazem em grandes iates enquanto outros se agarram a destroços flutuantes.”[4]
A saída para o futuro que desejamos alcançar depende, sem dúvida alguma, de todos — de cada uma e cada um de nós. Depende de sermos capazes de unir esforços e vontades e orientarmo-nos em conjunto para objectivos comuns. Nesse caminho de luta, que dificilmente será pacífico, é importante e pode por vezes ser decisiva a participação dos trabalhadores científicos. A sua responsabilidade social será posta à prova, o seu conhecimento da natureza e do mundo, a sua compreensão dos fenómenos sociais.
Os dias que correm não são favoráveis ao exercício da profissão científica nem no que toca às condições de trabalho nem no que respeita à forma como os cientistas são olhados pelo poder político.
A revista “Nature”, já referida atrás, inseriu há poucas semanas um editorial com o título “A Ciência e a Política são inseparáveis”[5]. Trata-se de uma chamada de atenção para o facto de o peso do aconselhamento científico no processo de definição de políticas vir sendo progressivamente desvalorizado pelas elites dirigentes. Ao mesmo tempo acentua-se a tendência para estreitar os limites impostos à liberdade de expressão, à liberdade de investigação e às liberdades académicas em geral.
Neste contexto é de inegável importância procurar conhecer o mundo em que vivemos e as engrenagens que movem e se movem no seio da sociedade. O gráfico abaixo ilustra de forma clara o impacto social de formas organizativas criadas para defender interesses comuns e tornar possível a acção colectiva [6]. Os dados referem-se aos Estados Unidos da América.
A fracção do rendimento nacional que os 10% mais ricos embolsavam foi a mais baixa (e maior a que cabia aos 90% abaixo daqueles) quando a taxa de sindicalização era mais alta. À medida que foi enfraquecendo o poder dos sindicatos, as desigualdades agravaram-se. Citando o economista e político norte-americano Robert Reich, com uma longa carreira de serviço público e um profundo conhecimento do seu país: “Não se trata de economia. Trata-se de poder”.
Em larga medida, os trabalhadores científicos, mostram-se, como outros, conscientes da importância da união de esforços para obter satisfação das necessidades que se lhes colocam como profissionais e como cidadãos, melhorar as suas vidas e a vida da comunidade em que se inserem. E têm-no abundantemente demonstrado. Na Europa, em particular, mas também em outros países, verifica-se, no que respeita às actividades de I&D e ao Ensino Superior, uma grande similitude de situações, designadamente no que respeita à questão da precariedade laboral, ao subfinanciamento e também à ausência de políticas científicas consistentes, adaptadas às necessidades locais, nacionais ou regionais. Políticas que se projectem para o futuro, de curto e médio prazos, num esforço concertado, orientado para a mitigação de ameaças globais que a Humanidade enfrenta, para tanto utilizando os instrumentos que a ciência e a técnica põem à nossa disposição.
Se olharmos para as preocupações que vemos manifestar-se nos círculos dirigentes, nos políticos de serviço e ao serviço das grandes corporações, na alta finança ou na indústria, provavelmente encontraremos uma grande discrepância entre os interesses que reflectem e os sérios problemas que afligem a vasta maioria das populações do planeta. Trata-se de problemas e situações correctamente reflectidos nos objectivos enunciados na “Agenda 2030 para um Desenvolvimento Sustentável” das Nações Unidas atrás referida. Será ingenuidade pensar que poderá mudar-se de rumo sem uma mobilização colectiva de grandes grupos humanos, certeiramente orientada. Não parece entretanto possível lá chegar sem grandes turbulências e a agudização de conflitos que tocarão a todos. Não está sequer afastado um possível cenário de guerra entre grandes potências.
Devemos ter consciência dos riscos associados às aplicações militares de novas tecnologias em acelerado desenvolvimento, em domínios como a engenharia genética ou a inteligência artificial, bem como ao “aperfeiçoamento” de explosivos nucleares e correspondentes veículos de transporte. Num tal quadro, importa que as mulheres e homens que trabalham em ciência, e que por isso deverão ter uma mais aguda consciência de tais riscos se mobilizem não apenas contra a possível utilização de armas de destruição massiva, mas também para o combate político pela sua completa abolição.
Frederico Carvalho
5 de Novembro de 2020
[1] “Experts must demand to be heard”, Editorial, Nature, 572, 153, 8 August 2019
[2] https://www.un.org/sustainabledevelopment/inequality/
[3] “Tackling the Inequality Pandemic: A New Social Contract for a New Era”, United Nations Secretary-General António Guterres’s Nelson Mandela Annual Lecture 2020 Speech. New York, 18 July 2020
(https://www.nelsonmandela.org/news/entry/annual-lecture-2020-secretary-general-guterress-full-speech )
[4] Cf. ref 3
[5] “Science and politics are inseparable”, Nature, 586,169, 8 October 2020
[6] “How today’s unions help working people — Giving workers the power to improve their jobs and unrig the economy”, Report by Josh Bivens, Lora Engdahl, Elise Gould, Teresa Kroeger, Celine McNicholas, Lawrence Mishel, Zane Mokhiber, Heidi Shierholz, Marni von Wilpert, Valerie Wilson, and Ben Zipperer, Economic Policy Institute, August 24, 2017
https://www.epi.org/publication/how-todays-unions-help-working-people-giving-workers-the-power-to-improve-their-jobs-and-unrig-the-economy/