FRANÇA: O ESTADO DA C&T

Foto: UNIVERSITÉ OUVERTE licensed under CC BY 2.0

CONSULTA ON-LINE SOBRE O ESTADO DO ENSINO SUPERIOR E DA INVESTIGAÇÃO (EM FRANÇA) E AS SUAS PERSPECTIVAS DE FUTURO.

 NOTA PRÉVIA

 O texto que reproduzimos abaixo é a tradução do que nos chegou através das nossas ligações internacionais. A qualidade de associação filiada na Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos dá-nos oportunidade de manter relações com outras organizações, nomeadamente de carácter sindical, que representam trabalhadores científicos de outros países. Em particular em França, país com o qual temos no plano cultural muitas afinidades. Essas afinidades estendem-se como seria de esperar a situações vividas nos domínios do Ensino Superior e da Investigação Científica, tanto no plano da organização dos respectivos sistemas nacionais como no da situação profissional do pessoal que exerce actividades de I&D. Em França, o subfinanciamento das instituições coexiste com situações de precariedade laboral e importantes limitações à participação da comunidade na definição de políticas e conteúdo do trabalho científico. A par disto e por razões compreensíveis verifica-se um forte movimento de contestação do status quo por parte de investigadores e docentes organizados em colectivos ou associações que procuram activamente responder a reivindicações legítimas desses grupos profissionais.

Uma consulta em linha recentemente lançada em França dirigida a docentes e investigadores vem contribuir para lançar luz sobre um conjunto de situações que se prendem com o estado do Ensino Superior e da Investigação naquele país e as suas perspectivas de futuro.

A consulta deve-se a um “Colectivo RogueESR” que se apresenta como “um colectivo de membros da comunidade académica” que “congrega aquelas e aqueles que fazem viver as suas instituições no dia-a-dia, e que desejam defender um serviço público do ensino superior e da investigação, aberto a todas e a todos”[1]

Segue-se a transcrição do texto atrás referido. A OTC agradece o contributo da colega Dina Bacalexi, investigadora no Centre Jean-Pépin, CNRS/ENS [2], para o esclarecimento de certos termos e conceitos usados ou referidos no texto original com vista a uma correcta tradução. O seu contributo está reflectido nas notas 6, 8 e 9, no final deste artigo.

 DOCUMENTO DO COLECTIVO RogueESR

 Caros colegas,

Ao sair do confinamento, propusemos-vos responder a uma consulta on-line sobre o estado do ensino superior e da investigação (em França) e as suas perspectivas de futuro. Em média, um pouco mais de 2500 pessoas responderam a cada pergunta. Conforme prometido apresentamos aqui um resumo dos resultados. Abaixo é feita uma avaliação geral e encontrará em seguida uma ficha-síntese que apresenta, com números, os resultados mais significativos[3].

O que está em jogo nesta consulta é saber onde estamos “nós”, ou seja, “onde está o Nós” da comunidade científica. Tudo, na dinâmica iniciada há cerca de quinze anos, contribui para quebrar a colegialidade e fazer divergir os interesses. A retórica da “co-construção”, o sistema de alocação de recursos, os mecanismos de precarização, subjectivos e objectivos, mantêm a nossa atomização. A sondagem mostra os sinais disso: a desconfiança em relação aos representantes eleitos, incluindo órgãos colegiais, é extraordinária; os intercessores tradicionais, como as sociedades científicas, deixaram de ser considerados pelos entrevistados como actores que tenham compreendido os principais problemas que as nossas profissões enfrentam; a maioria dos inquiridos, eles próprios titulares de lugares permanentes em mais de 75% dos casos reconhecem caber a esses titulares uma parte da responsabilidade no crescimento da precariedade. Tais resultados são sinal de uma tomada de consciência individual que importa agora articular colectivamente: nós próprios vemos até que ponto o mecanismo de desapropriação nos confina em posições profissionais e éticas divergentes e contraditórias, impedindo a afirmação de uma vontade de ultrapassar divisões entre ordens profissionais, entre estatutos, entre disciplinas e entre instituições. Digamos aqui novamente: esta fragmentação não é uma sequela das reformas, é um seu propósito central. Logo, reconhecer essa situação dolorosa, deve fazer parte do diagnóstico a ser feito para saber o que se quer construir.

O mais interessante é verificar que várias propostas alcançam níveis de concordância acima de 90% ou mesmo 95% e englobam grupos cujas respostas divergem em outros assuntos. Não é de surpreender que tal sintonia se manifeste na questão dos recrutamentos para cargos permanentes; nos meios orçamentais em geral; e na rejeição da Lei de Programação Plurianual da Investigação (LPPI)[4]. Refira-se que a concentração na Agência Nacional para a Investigação (ANI)[5] de um eventual acréscimo de recursos financeiros, o que levaria a um agravamento da precariedade, é objecto de uma rejeição tão massiva como a própria LPPI. Também é avassalador o consenso em afirmar que a precarização não é de forma alguma neutra do ponto de vista do processo científico colectivo e compromete a sua qualidade, uma conclusão diametralmente oposta ao ponto de vista do ministério e da gestão do CNRS. O mesmo acontece quanto à afirmação da centralização da via eleitoral na composição dos órgãos de supervisão das regras de avaliação de desempenho profissional, temperada onde aplicável com modalidades de designação distintas da nomeação,

Estas primeiras convergências dizem respeito a outras tantas limitações com que se depara a dinâmica da atomização: conscientes da efectiva desconstrução do interesse comum que as reformas implicam, reafirmamos a nossa vontade de manter uma comunidade unida cujas práticas se baseiam na igualdade estatutária, na resolução democrática das diferenças de consenso, na exigência de rigor, de paciência e de ouvir o outro. A elaboração de um método de alocação de recursos não burocrático e de base científica, tendo em conta as especificidades disciplinares, é disso um exemplo concreto. Queremos a autonomia com as condições materiais que ela pressupõe. Mas, ao mesmo tempo, refutamos o sofisma que consistiria em pretender que autonomia académica significasse irresponsabilidade, pois é num mesmo plano que os inquiridos declaram querer repensar as suas práticas para ter em conta as crises ecológica e climática que impõem um novo posicionamento académico, mais demorado, mais fundamentado, mais íntegro, mais lúcido intrinsecamente — numa palavra, mais em sintonia com o ideal que nunca deveria ter deixado de ser o da ciência.

Esta convergência de princípios dará forma ao quadro de reflexões que vos convidamos a lançar nos vossos locais de trabalho e nas vossas cidades a partir deste Outono. As jornadas “Reconstruir a universidade e a investigação”, de 25 e 26 de Setembro, são o tiro de partida dessa reagregarão teórica de um “Nós”.

O colectivo RogueESR

Síntese da sondagem

Os respondentes

Duas mil e quinhentas pessoas responderam ao inquérito; 52% são professores titulares ou docentes-investigadores (incluindo três presidentes de universidade ou instituição), e 24% são investigadores de quadro. 14% são alunos de doutoramento (com contrato sem termo, a termo certo, ou não financiados). O pessoal administrativo e técnico representa 9% dos respondentes. No que toca à área disciplinar, 42% dos entrevistados que exercem uma profissão académica vêm das áreas de Letras, Línguas e Ciências Humanas e Sociais, 19% das ciências biomédicas e 39% do grupo das ciências, tecnologias, engenharias e matemática. 44% disseram ser mulheres, 54% homens. 19% têm menos de 35 anos, 60% têm entre 36 e 55 anos, 21% têm 56 anos ou mais.

Situação sanitária no ensino superior

As primeiras questões do inquérito pediam uma avaliação da situação sanitária no Superior no período de desconfinamento e na perspectiva do início do ano lectivo. 70% dos inquiridos manifestaram pessimismo em relação ao início do ano lectivo, julgando difícil, senão impossível, a organização de um início de ano lectivo satisfatório. A perspectiva do teletrabalho (“trabalho à distância”) é vista de forma negativa por 57% dos respondentes, e apenas 13% expressam uma opinião positiva sobre essa possibilidade. 80% consideram que o ensino e a avaliação à distância respondem a objectivos distintos do ensino e avaliação “presencial”. Por fim, 85% consideram impossível ou difícil organizar uma reentrada de ano que cumpra as normas sanitárias exigíveis sem recrutamentos adicionais, não previstos pelo ministério.

Balanço das políticas implementadas nos últimos 15 anos

No plano científico o balanço que é feito da onda de reformas iniciadas há quinze anos em toda a OCDE confirma o seu fracasso aos olhos dos cientistas: apenas um terço dentre eles considera que a qualidade das publicações científicas aumentou, no mundo e em França (34% e 35%); uma curta maioria absoluta fala de estagnação ou mesmo regressão. Este sentimento de estagnação e regressão é mais acentuado no que se refere à França (54%) do que ao resto do mundo (50%).

Sem surpresa revela-se um grande consenso sobre a questão dos recursos: nove em cada dez respondentes consideram os recursos alocados à investigação e à universidade insuficientes ou muito insuficientes (89% para a pesquisa, 91% para a universidade). Mas o consenso é igualmente notável na questão do modo de gestão promovido pelas reformas, julgado negativo por 94% dos entrevistados no caso da investigação e por 89% no caso da universidade. Neste contexto em que 80% dos inquiridos se dizem suficientemente bem, ou mesmo muito bem informados sobre o conteúdo da Lei de Programação Plurianual da Investigação (LPPI), o seu conteúdo nos aspectos de gestão e estatutário é expressamente rejeitado por 81%.

Emprego e precariedade

Três questões visavam avaliar a extensão da precarização das profissões científicas, por grupos profissionais (docentes e/ou investigadores, pessoal administrativo, pessoal técnico). No final concluiu-se que essas questões permitiram, antes de tudo, medir a invisibilidade associada ao tema, mostrando que nas várias situações mais de 30% dos entrevistados se declararam incapazes de estimar a extensão da precariedade nos seus locais de trabalho – uma conclusão que vem sublinhar a urgência de balanços sociais honestos a todos os níveis e de uma comunicação aberta sobre este assunto. Essa invisibilidade da precarização não impede que 64% dos inquiridos afirmem que os cursos universitários não seriam viáveis sem os docentes precários; 70% consideram que tarefas vitais para o funcionamento do Ensino Superior e Investigação dependem de pessoal não permanente; 85% são de opinião que a precariedade de uma parte do pessoal afecta a produção científica do todo; e 40% afirmam ter visto a investigação da sua unidade afectada pela rotatividade de trabalhadores precários. Consequentemente, mais de 90% rejeitam as propostas adiantadas pelo ministério nas negociações mantidas com certos interlocutores sindicais e com sociedades científicas (aumento do orçamento da ANI em troca de um apoio à componente de recursos humanos (RH) da LPPI). Por fim, apenas 6% dos entrevistados consideram que o ministério esteve à altura das dificuldades experimentadas pelos precários durante o confinamento.

Quanto à consideração dessas dificuldades pelos representantes da comunidade, se dois terços dos respondentes pensam que os sindicatos têm tido em conta suficientemente bem a extensão do problema, apenas um terço considera que o mesmo é válido para as sociedades científicas, e menos de um quarto dos inquiridos considera que os órgãos eleitos de universidades e organizações se aperceberam da importância desta questão.

Em relação à responsabilidade pela situação, 96% dos respondentes atribuem uma responsabilidade entre forte e esmagadora ao ministério, mas também 75% às direcções das universidades e instituições de investigação, e entidades financiadoras[6]. Inversamente, 85% consideram que os precários não têm qualquer responsabilidade ou têm uma responsabilidade mínima pela situação, enquanto apenas 9% desresponsabilizam o grupo dos “titulares”, isto é, os que ocupam lugares permanentes, pelo destino imposto aos precários (recordemos que 76% dos inquiridos são eles próprios titulares).

Burocracia ou democracia

A sondagem confirma o estado muito preocupante da democracia académica e científica: 83% dos inquiridos consideram-se insuficientemente envolvidos nas decisões orçamentais do estabelecimento onde trabalham e 60% nem sequer estão envolvidos. 60% dos inquiridos não estão suficientemente envolvidos nas decisões de carácter pedagógico na universidade e 67% nas decisões científicas.

Se o próprio princípio da existência de um órgão avaliador como o HCERES[7] é criticado por metade dos respondentes, contra um quarto que o considera positivo, o seu actual modo de composição, sem eleição, satisfaz apenas 2,4% dos entrevistados. Dois terços dos participantes (65%) defendem ou a eleição em listas fechadas ou em listas semi-abertas[8].

Foi pedido também aos inquiridos que estimassem o número de relatórios que tinham que enviar por ano para essas instâncias de avaliação, o que fez aparecer um enorme fosso entre os 2,4% de entrevistados que fizeram 10 ou mais relatórios, chegando a um pico de 60, e o resto da comunidade, onde 55% dos inquiridos responderam: nenhum.

Mais de 90% dos respondentes atribuem ao ministério uma forte ou mesmo esmagadora responsabilidade nesta situação, em igualdade com a que cabe às direcções das universidades e instituições de investigação, enquanto “apenas” 86% põem causa os organismos de avaliação e o Conselho Superior (HCERES). De referir ainda que 37% dos inquiridos consideram que o pessoal científico “titular” com funções de coordenação tem responsabilidades neste estado de coisas [9].

Repartição dos recursos

A estimativa de custos de produção de um artigo científico, à parte salários, mostra ser possível alocar racionalmente recursos para que todos os investigadores possam trabalhar, evitando a pressão de prazos impostos, a burocracia e o conformismo inerentes aos concursos de projectos. Assim, os inquiridos reconhecem uma gradação de necessidades, das Letras e Ciências Humanas (alguns milhares de euros) às Ciências da Vida (cerca de cem mil euros), seguindo uma linha de crescimento que acompanha o peso da componente do trabalho experimental que necessita de material dispendioso. O número médio de signatários de um artigo científico segue a mesma progressão entre as disciplinas. A variabilidade das respostas mostra que uma distribuição estritamente determinada pelo campo disciplinar, possivelmente, ficará ligeiramente abaixo do ideal. No entanto, constitui uma primeira aproximação que, no essencial, permitiria uma distribuição adequada dos recursos.

Publicações

O diagnóstico severo que incide sobre a evolução qualitativa das publicações decorre directamente do facto de que metade dos respondentes (50%) confessa publicar ocasional ou regularmente trabalhos inacabados. 14% declaram tê-lo feito “uma vez”. Mais de dois terços (68%) dizem não ter tempo para acompanhar o estado da investigação na sua área.

Com relação ao financiamento das publicações, quase dois terços dos inquiridos (64%) nunca procuraram que a sua instituição pagasse os custos da publicação dum artigo numa revista. No que toca às revistas em Open Access, 53% nunca pagaram para publicar, sendo que 85% dos entrevistados já publicaram em Open Access. Este modelo predador está assim largamente ausente das práticas científicas em França. De resto, é visto negativamente por 89% dos inquiridos.

Por outro lado, 57% dos respondentes já procuraram e obtiveram publicações em sites piratas e 63% desejariam que as sociedades científicas retomassem o controlo das publicações, mesmo que isso signifique arcar com os custos (apenas 6% se opõem a isso).

Profissões científicas e a crise ecológica

A última série de perguntas visava sondar a comunidade científica sobre em que medida a crise ecológica era tida em conta na formulação das prioridades da política científica.

As respostas mostram que 84% dos respondentes pensam que a crise ecológica e climática deve levar a mudanças nas práticas científicas; 76% acreditam que as práticas actuais dão origem a um número excessivo de viagens e 81% acreditam que a redução da pegada de carbono das actividades científicas se deve tornar uma prioridade no estabelecimento de políticas universitárias e de investigação.

Setembro 2020

[1] http://rogueesr.fr/

[2] Dina Bacalexi, filóloga, está ligada ao Syndicat National des Travailleurs de la Recherche Scientifique (SNTRS-CGT), filiado na Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos

[3] Não dispomos desta ficha-síntese (Nota OTC)

[4] LPPR na sigla francesa

[5] A Agência Nacional para a Investigação (ANR, na sigla francesa) tem por missão financiar a investigação científica. Fundada em 2005 como entidade de interesse público adquiriu o estatuto de instituto público de carácter administrativo em 1 de Agosto de 2006.

[6] Trata-se de agências criadas pelo governo para “pilotar” a ciência, isto é, definir as “prioridades” científicas e, na maior parte das vezes, atribuir meios financeiros a quem trabalha sobre essas “prioridades” em detrimento do que se se chama “frente contínua do conhecimento” que pressupõe que todos os domínios científicos merecem ser estudados e para tanto dispor de recursos e de pessoal. Estas agências, como a ANR (https://anr.fr/fr/) abrem concursos de projectos. Este mecanismo é criticado por se entender que fazem aumentar a precariedade, uma vez que os fundos são frequentemente usados para recrutar precários que, terminado o projecto, não vêm a ocupar lugares permanentes. Critica-se-lhe também o seguirem aa “modas” ou as “tendências” do momento e de funcionar como instrumento de “pilotagem” da investigação sobrepondo-se aos órgãos representativos da comunidade científica (como os conselhos científicos dos institutos do CNRS ou dos seus equivalentes noutras instituições).

[7] Conselho Superior de Avaliação da Investigação e do Ensino Superior. Na sigla francesa, HCERES, « Haut Conseil de l’évaluation de la recherche et de l’enseignement supérieur »

[8] O termo francês é “panachage”.Os eleitores podem fazer uma escolha de nomes em diferentes listas.

[9] Em francês: “fonctions de pilotage”. Trata-se de pessoal científico com assento em conselhos directivos de instituições ou colocados no ministério de tutela. São pessoas normalmente escolhidas por razões de política, e com a mesma cor política daqueles que as escolhem. O que se lhes critica é o facto de terem deixado de fazer ciência e seguir orientações políticas, (Ver também, acima, a nota 6).