À beira do abismo, uma sociedade inerte diante do colapso climático.
Entrevista especial com Luiz Marques
Por: Ricardo Machado | 28 Mai 2021
Nos últimos 40 anos, mesmo com os alertas em relação à necessidade de se frear a emissão de gases de efeito estufa, praticamente dobramos as partes por milhão, saltando de 1,28 ppm nos anos 1970 para 2,4 ppm na última década. O que esse número indica é que aumentamos nossa pegada ecológica, mas o que mais importa é nos interrogarmos sobre “a inércia das sociedades diante dos riscos engendrados por esse aumento”, pontua o professor e pesquisador Luiz Marques, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
“O que nos dizem esses alertas é que já não temos mais que cinco ou dez anos para mudar radicalmente de trajetória, sob pena de vermos diminuídas radicalmente nossas chances de sobrevivência, inclusive, no limite, como espécie”, ressalta o entrevistado. “O principal desafio é, em meu entender, superar o autoengano, que induz ao erro mais trágico de julgamento, qual seja, o de que as iniciativas em pauta no âmbito do capitalismo e da atual ficção de governança global podem e estão em vias de minorar significativamente a emergência climática. Elas não estão”, complementa.
Quando se trata de comparar dados recentes em relação ao Brasil, em um curto espaço de tempo, entre 2017 e 2021, Marques frisa que a situação piorou drasticamente. “A diferença entre a situação de 2017 e a de 2021 pode ser definida como a diferença entre o mal relativo e o mal absoluto. Por preocupante que fosse, a situação da floresta amazônica em 2017 era incomparavelmente melhor que a situação dos últimos dois anos, após a eleição de Bolsonaro, seguramente a maior calamidade que se abateu sobre o Brasil desde o hediondo golpe militar de 1964”, avalia.
Luiz Cesar Marques Filho (Foto: Arquivo pessoal)
Luiz Cesar Marques Filho é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Diplôme d’Études Approfondies – DEA em Sociologia da Arte pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales – EHESS, de Paris, e doutor em História da Arte pela mesma instituição. Foi curador-chefe do Museu de Arte de São Paulo – MASP, entre 1995-1997. Atualmente é professor livre-docente do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas e coordenador do Projeto Museu de Arte para a Educação – MARE. Suas pesquisas versam sobre História da Arte Italiana dos séculos XV e XVI e suas relações com a Tradição Clássica e sobre crises socioambientais. Das publicações mais recentes, destacamos Capitalismo e Colapso Ambiental (Campinas: Editora da Unicamp, 2018).
A entrevista foi publicada originalmente no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no dia 26-05-2021.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que devemos levar a sério as interferências antrópicas no Sistema Terra?
Luiz Marques – Recapitulemos três indicadores emblemáticos dos impactos atuais dessas interferências nas áreas da poluição, da emergência climática e da perda de biodiversidade:
As doenças em humanos causadas pela poluição foram responsáveis em 2015 por cerca de 9 milhões de mortes prematuras (entre 30 e 69 anos), ou 16% das mortes no mundo todo. Apenas para colocar esses números em perspectiva, eles representam o triplo da soma das mortes por Aids, tuberculose e malária, e 15 vezes mais que as mortes causadas por todas as guerras e outras formas de violência. [1] Em 2020, a Organização Mundial da Saúde – OMS publicou um relatório sobre a crescente incidência de câncer no mundo, [2] em grande parte devida, comprovadamente, à exposição dos organismos à poluição industrial. Em 2008, houve 12,6 milhões de pessoas diagnosticadas com câncer; em 2018, registrou-se um aumento de cerca de 50%, com 18,1 milhões de incidências de câncer, e a OMS projeta que em 2040 esse número saltará para 29,4 milhões. Falamos, portanto, de um aumento de 130% de casos de câncer em menos de três décadas (2012-2040) para um aumento populacional de cerca de 25% no mesmo período. [3] Os distúrbios endócrinos e neurocomportamentais causados pela poluição são igualmente brutais e crescentes, conforme mostra um editorial da revista Environmental Health Perspectives, intitulado A Research Strategy to Discover the Environmental Causes of Autism and Neurodevelopmental Disabilities. [4]
“Autismo, transtorno do déficit de atenção e hiperatividade – TDAH, retardamento mental, dislexia e outras desordens de base biológica afetam entre 400 mil e 600 mil das 4 milhões de crianças nascidas nos EUA a cada ano. […] Estudos prospectivos […] associaram comportamentos autistas com exposições pré-natais a inseticidas organofosforados clorpirifós [inseticidas que inibem a transmissão dos receptores do sistema nervoso] e também com exposições pré-natais a ftalatos. Estudos prospectivos adicionais associaram perda de inteligência (QI), dislexia e TDAH a chumbo, metilmercúrio, inseticidas organoclorados, bifenilos policlorados, arsênio, manganês, hidrocarbonetos aromáticos policíclicos, bisfenol-A, retardantes de chamas brominados e compostos perfluorados. Substâncias químicas tóxicas causam lesões no desenvolvimento do cérebro humano através de toxicidade direta ou de interações com o genoma. Um comitê de especialistas creditados pela Academia Nacional de Ciências – NAS dos EUA avalia que 3% das desordens neurocomportamentais são diretamente causadas por exposição a substâncias tóxicas no meio ambiente e que outras 25% são causadas por interações entre fatores ambientais, definidos em sentido largo, e susceptibilidades herdadas (National Research Council, 2000)”.
Nos últimos quarenta anos, a taxa de aumento das concentrações atmosféricas de gases de efeito estufa – GEE resultantes de emissões antropogênicas desses gases quase dobrou, passando de 1,28 ppm (partes por milhão) em média por ano na década 1970-1979 para 2,4 ppm na década de 2010-2019. [5] Esse aumento está ocasionando, como se sabe, aceleração do aquecimento global e intensificação das demais anomalias do sistema climático. Segundo um relatório da Organização Meteorológica Mundial, há 24% de chances de que pelo menos um ano até 2024 seja ao menos 1,5°C mais quente que a média do período pré-industrial (1850-1900) e essas chances aumentam com o tempo. Entre 2025 e 2030 é já muito alta a probabilidade de se atingir um aquecimento médio superficial global, terrestre e marítimo combinado entre 1,5°C e 2°C acima do período 1850-1900. É importante entender que os impactos causados pelo aquecimento global não evoluem de modo linear. Os impactos decorrentes de um aquecimento entre 1,5°C e 2°C (acima do período 1850-1900) são desproporcionalmente maiores que os impactos produzidos pelo aquecimento entre, por exemplo, 0,85°C em 2012 e 1,2°C em 2020.
As taxas de defaunação, de desmatamento e, portanto, de extinções em massa de espécies animais e vegetais não têm precedentes na história de nossa espécie. Segundo a Plataforma Intergovernamental Científico-Política de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos – IPBES, “a taxa de perda das paisagens de florestas tropicais intactas triplicou em 10 anos, devido à indústria madeireira, à expansão agropecuária, ao fogo e à mineração (bem estabelecido)”. [6] O balanço das 20 Metas de Aichi, incluídas no Plano Estratégico para a Biodiversidade para 2011-2020 adotado por quase 200 nações na COP10 da Convenção da Diversidade Biológica – CBD em Nagoya, é quase totalmente negativo. Richard Gregory, da Royal Society for the Protection of Birds, deu voz à comunidade científica ao declarar que esse balanço “representa um fracasso maciço, se não mesmo catastrófico, em todos os níveis.” [7] Um trabalho recente publicado por 17 pesquisadores de enorme experiência [8] mostra que, por terríveis que sejam, os indicadores de perda de biodiversidade podem estar subestimando a realidade. Sintetizo aqui em nove pontos as constatações deste trabalho:
a) a biomassa da vegetação terrestre foi reduzida em 50% nos últimos 11 mil anos (Holoceno);
b) houve perda de mais de 20% de sua biodiversidade original;
c) o Homo sapiens alterou mais de 70% da superfície terrestre da Terra;
d) registram-se extinções de mais de 700 espécies de vertebrados documentados e cerca de 600 espécies de plantas nos últimos 500 anos;
e) o tamanho da população de espécies de vertebrados monitoradas diminuiu em média 68% desde 1970, com certos grupos populacionais em declínio extremo;
f) segundo o IPBES, cerca de 1 milhão de espécies eucarióticas podem se extinguir nos próximos poucos decênios;
g) cerca de 40% das espécies de plantas podem ser consideradas em perigo de extinção;
h) a biomassa global de mamíferos selvagens é menos de 25% menor da estimada para o Pleistoceno Superior (355 mil a 82.800 mil anos atrás);
i) os insetos estão desaparecendo rapidamente em muitas regiões, inclusive os polinizadores, sendo que 90% da vitamina C de que precisamos provém de frutas, verduras, óleos e sementes polinizados por insetos.
IHU On-Line – De que maneira nós, os humanos, fomos construindo essa indelével pegada geológica?
Luiz Marques – Essa questão é bem respondida pelos icônicos 24 gráficos publicados por Will Steffen e colegas em 2015, demonstrativos do que veio a se chamar “A Grande Aceleração”. [9] Embora muito conhecidos, vale a pena reproduzi-los.
Figura 1 – A Grande Aceleração ocorrida após 1950, demonstrada nos gráficos de 24 tendências socioeconômicas e do sistema Terra
Fonte: Will Steffen, Wendy Broadgate, Lisa Deutsch, Owen Gaffney & Cornelia Ludwig, “The trajectory of the Anthropocene: The Great Acceleration”. The Anthropocene Review, 2015, 2(1), pp. 81-98
A inflexão dessas curvas a partir da década de 1950 mostra que a escala da interferência humana no sistema Terra começou a aumentar exponencialmente, não apenas por causa do salto demográfico, mas também e principalmente pelos saltos de extração, produção, consumo e geração de lixo (sobretudo não biodegradável), bem como pelo aumento da desigualdade socioeconômica.
Mas tão importante quanto perceber a cronologia e a dinâmica do aumento da pegada ecológica é se interrogar sobre a inércia das sociedades diante dos riscos engendrados por esse aumento. Quando, por volta de 2050, os historiadores se debruçarem sobre o catastrófico primeiro século do Antropoceno, isto é, sobre os 100 anos transcorridos entre 1950 e 2050, terão talvez melhores condições de responder à questão que se afigura hoje como a mais enigmática de todas: por que as sociedades humanas não reagiram – não estão em todo caso reagindo até 2021 – aos óbvios e crescentes riscos existenciais advindos da ação combinada da emergência climática, do declínio catastrófico da biodiversidade e da poluição industrial?
Respostas parciais a essa questão existem hoje, é claro. A primeira e mais óbvia delas é o fato de que ingentes interesses corporativos associados aos Estados nacionais têm sido capazes de obstruir tal reação. Frise-se que corporações e Estados nacionais são, em geral, duas faces da mesma moeda, de modo que prefiro falar em Estados-corporações, os quais englobam, desde sempre, também os Estados e corporações do ex-bloco socialista. Na área energética, a mais crucial do sistema econômico, a identidade entre Estados nacionais e corporações é quase total: quatro das cinco maiores companhias de petróleo e gás do mundo, em receitas de 2019, são estatais (Sinopec, CNPC, PetroChina e Saudi Aramco). [10] Quanto à Petrobras, ela continuava no ano retrasado na posição de 10º maior produtor de petróleo no mundo, [11] o que, seja dito de passagem, refuta a propaganda orquestrada pela direita em geral, segundo a qual o PT teria destruído a Petrobras. [12] A Figura 2 mostra que o governo de Dilma, bem longe de ter enfraquecido a estatal, é responsável por uma aceleração da produção de petróleo brasileiro justamente a partir de 2013:
Figura 2 – Produção, exportação e importação de petróleo no Brasil entre 2005 e 2020 (em milhões de barris por dia)
Fonte: Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás
Sejamos claros: se esse gráfico desqualifica as acusações de que o PT destruiu a Petrobras, ele exprime, por outro lado, algo muito mais grave: a recusa de parte de Lula, Dilma e de tantos outros “desenvolvimentistas” – compartilhada com os dirigentes das demais nações e corporações – em reconhecer que a catástrofe socioambiental em curso decorre diretamente, sobretudo, da exploração dos combustíveis fósseis.
Segunda resposta óbvia: os Estados-corporações não hesitam em lançar mão do uso de força policial-militar contra revoltas sociais, tais como o Extinction Rebellion no Reino Unido e diversos movimentos sociais na América Latina – sobretudo do MST e das populações quilombolas e indígenas andinas e brasileiras –, que tentam minorar os riscos existenciais crescentes à habitabilidade do planeta. Mas além de usar a força, os Estados-corporações empenham-se em gerar narrativas de mundo que “racionalizam” e “naturalizam” seus interesses. Segundo essas narrativas, o trágico (e inegável) malogro da experiência histórica do “socialismo real” teria demonstrado que o capitalismo globalizado, com seu imperativo existencial de crescimento, representaria a mais elevada forma de organização social humana. Alternativas sistêmicas ao capitalismo não passariam, portanto, de utopias perigosas, posto que condenadas a redundar, na prática, em algo pior que o status quo. Tal é a razão pela qual, aos olhos de setores ainda majoritários da sociedade, qualquer proposta política que preconize formas alternativas de organização socioeconômica padece ainda de credibilidade. O fato é que nada carece mais de credibilidade do que o capitalismo, quando se trata de desviar a humanidade e a biosfera de nossa atual trajetória de extinção.
Penso no historiador do futuro porque nenhuma resposta parece, hoje, suficiente para explicar o abismo que separa o conhecimento científico da ação política. Temos plena consciência das causas primárias da catástrofe global em curso e temos tecnologia para neutralizá-las. Estamos nos afogando em conhecimento dessas causas. Elas são bem quantificadas, mostram uma dinâmica de aceleração e as projeções feitas desde os anos 1970 têm sido confirmadas ou mesmo ultrapassadas pelas observações. [13] Hoje, portanto, sabemos, além de qualquer dúvida razoável, que nossa trajetória neste último meio século está em vias de inviabilizar, e cada vez mais rapidamente, qualquer projeto de civilização. Todos os alarmes vermelhos estão disparando! Há 50 anos somos bombardeados por alertas emitidos por coletivos científicos, que se acumulam e assumem recentemente tons de ultimatos. O que nos dizem esses alertas é que já não temos mais que cinco ou dez anos para mudar radicalmente de trajetória, sob pena de vermos diminuídas radicalmente nossas chances de sobrevivência, inclusive, no limite, como espécie.
Tudo em vão. É claro que as advertências científicas não foram totalmente ignoradas. Ao contrário, desde ao menos os anos 1970 multiplicam-se iniciativas políticas e diplomáticas, convenções, tratados e acordos, culminando no Acordo de Paris e nos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, ambos de 2015. Mas nenhuma dessas iniciativas foi ou está sendo capaz de sequer diminuir a poluição, a destruição da biodiversidade e o acúmulo de gases de efeito estufa na atmosfera e nos oceanos, de modo que o impacto real desses 50 anos de iniciativas é pífio. O conhecimento científico foi reduzido a jargões e slogans autocongratulatórios repetidos como mantras apotropaicos pelos “tomadores de decisão”. As palavras mágicas mais poderosas hoje são “desenvolvimento sustentável”, “descarbonização”, “transição energética” e “crescimento verde”… A incapacidade de nossas sociedades de dar expressão política ao conhecimento científico só pode ser caracterizada, em suma, pelo termo fracasso. Não há como relativizar essa caracterização, pois aqui a linha divisória entre sucesso e malogro é nítida. Fracasso ocorre, por definição, quando não se avança na direção da meta almejada. E é exatamente isso o que está acontecendo.
IHU On-Line – Quais são hoje os principais desafios em relação à agenda climática global?
Luiz Marques – O principal desafio é, em meu entender, superar o autoengano, que induz ao erro mais trágico de julgamento, qual seja, o de que as iniciativas em pauta no âmbito do capitalismo e da atual ficção de governança global podem e estão em vias de minorar significativamente a emergência climática. Elas não estão. Se conseguirmos entender a gravidade desse erro, o resto, por difícil que seja, será mais fácil, pois o correto entendimento da extrema gravidade da situação atual nos impelirá a ações em sintonia com a realidade. O exemplo mais emblemático de autoengano é quase pueril: o forte aumento do emprego de energias eólica e fotovoltaica é objeto de celebração universal. Mas a emergência climática não decorre da insuficiência das chamadas energias renováveis de baixo carbono, e sim da crescente queima de combustíveis fósseis. De nada adianta aumentar uma sem diminuir a outra… Ora, projetam-se aumentos do consumo global de combustíveis fósseis até pelo menos 2040, como indica a Figura 3.
Figura 3 – Consumo global observado e projetado de energia, segundo suas fontes entre 1970 e 2040 (em bilhões de toneladas de petróleo equivalente)
Fonte: BP Energy Outlook & Robert Perkins, “BP’s summer surprise shines spotlight on stranded oil, gas assets: Fuel for Thought”. S&P Global, 1/IX/2020
Esse gráfico mostra que a transição energética é ilusória. O consumo de carvão, petróleo e gás aumenta até 2040 em termos absolutos. Sim, o consumo de energias renováveis de baixo carbono aumenta a taxas maiores que o dos combustíveis fósseis. Mas isso não importa, porque o sistema climático não se interessa por termos como taxas decrescentes de crescimento, tão apreciados por economistas. Antônio Guterres, secretário-geral da ONU, resumiu o autoengano numa frase lapidar: “enganamos a nós próprios se pensamos que podemos enganar a natureza”.
Se ainda havia alguma margem para ilusão, a Agência Internacional de Energia acaba de liquidá-la ao lançar seu relatório “Net Zero by 2050: A roadmap for the global energy sector”. Suas projeções vão até 2030 e sua mensagem central, dita de modo um tanto eufemístico, é a seguinte: “não há necessidade de investimentos em nova oferta de combustíveis fósseis em nossa trajetória de zero emissões líquidas de carbono” (“there is no need for investment in new fossil fuel supply in our net zero pathway”). Isso significa que qualquer investimento suplementar em energia fóssil hoje impede conter o aquecimento médio global abaixo de 2ºC. Os investimentos em energias fósseis vão, contudo, de vento em popa: “desde o Acordo de Paris [2016-2020], os 60 maiores bancos do mundo irrigaram a indústria de energias fósseis com US$ 3,8 trilhões”. Pior que isso, esses financiamentos vêm aumentando ano a ano, e mesmo os financiamentos de 2020, em plena pandemia, foram superiores aos de 2016 e de 2017, conforme mostra a Tabela 1:
Tabela 1 – Financiamentos da indústria de combustíveis fósseis pelos 60 maiores bancos do mundo entre 2016 e 2020 (em bilhões de dólares)
Fonte: Banking on Climate Chaos. Fossil Fuel Finance Report, 2021
Segundo um documento de abril de 2021 do Energy Policy Tracker, no espaço de apenas 12 meses os governos dos países do G20 comprometeram recursos públicos no valor de USD 263,25 bilhões para a manutenção e acréscimo da matriz energética fóssil. [14] Na China, por exemplo, há em 2021 em fase de construção ou de projeto termelétricas movidas a carvão capazes de gerar um total de 247 gigawatts. Em 2020, o país aprovou a construção de 47 gigawatts de usinas a carvão, mais do triplo da capacidade permitida em 2019.[15] É preciso lembrar que cada usina termelétrica criada – e há centenas delas em construção hoje – implica emissões de GEE pelos próximos 40 anos. Insista-se: superar o autoengano é o principal desafio de nosso tempo porque nenhum outro será vencido se continuarmos a acreditar que o capitalismo pode resolver os problemas que ele criou.
IHU On-Line – É possível frear o colapso socioambiental global? Se sim, como? Se não, por quê?
Luiz Marques – Sim, claro, é possível e absolutamente necessário freá-lo! Cada décimo de grau a menos no aquecimento global, cada área natural e cada espécie preservada, cada hectare a mais de restauração da vegetação nativa (ou o mais próximo possível dela), cada progresso no sentido de abandonar a agropecuária intoxicante e a dieta baseada em carne, cada diminuição na geração de resíduos, cada um desses esforços e muitos outros desacelera os processos degradantes em curso. Desacelerar é essencial, porque o tempo é uma variável decisiva no cálculo das chances de adaptação humana e de outras espécies às vindouras condições tão mais adversas à vida do planeta.
Isso posto, é preciso encarar os fatos, mesmo que muito dolorosos: pode-se atenuar, mas não é mais possível evitar um processo quando ele já se tornou irreversível. Muitos processos típicos de um colapso socioambiental planetário já se tornaram irreversíveis e estão se acelerando. Tomemos o exemplo do degelo. Já em 2014, Qin Dahe, codiretor do Quinto Relatório de Avaliação do IPCC, afirmava: “o nível médio global do mar continuará a se elevar, mas a uma taxa mais rápida que a observada nos últimos 40 anos”. [16] Nada mais pode, de fato, deter o fenômeno físico de expansão térmica da água dos oceanos sob efeito do aquecimento, nem o degelo no Oceano Ártico e dos glaciares da Groenlândia e da Antártida. Esse degelo funciona numa dinâmica de círculo vicioso. Não por acaso, a rapidez da elevação média do nível do mar decuplicou em um século. Ela era de 0,6 mm ao ano no período 1900-1930 e está em 2019 se acelerando a uma taxa média de 6,1 mm ao ano. [17] Há projeções de aumentos futuros fulminantes, avançadas inclusive por cientistas com a experiência e a credibilidade de James Hansen.
Em um trabalho publicado em 2016, Hansen e colegas afirmam: “nossa análise mostra uma realidade muito diferente da proposta pelo IPCC (…). Nossa hipótese é que a perda de massa do gelo mais vulnerável, suficiente para aumentar o nível do mar em vários metros [several meters], aproxima-se melhor de uma resposta exponencial que de uma resposta linear. A duplicação [dessa perda] em períodos de 10, 20 ou 40 anos provocam elevações do nível do mar de muitos metros [multi-meter sea level rise] em cerca de 50, 100 ou 200 anos”. [18] Em 2019, Michael Bevis e colegas reiteram o veredito de irreversibilidade e de aceleração da elevação do nível do mar: “estamos vendo o manto de gelo [da Groenlândia] atingir um ponto de inflexão (tipping point). (…) Veremos elevações cada vez mais rápidas do nível do mar num futuro discernível”. [19] Cerca de 300 milhões de habitantes de seis países asiáticos (China, Índia, Vietnã, Bangladesh, Tailândia e Indonésia) vivem em 2021 em terrenos que serão inundados na maré alta em 2050. [20] As linhas costeiras de outros continentes não estão sendo e não serão por certo poupadas. Portanto, é mais que necessário refrear tanto quanto possível esse processo de degradação ambiental. Mas isso só será possível numa sociedade não capitalista, numa sociedade muito mais igualitária, movida por um aprofundamento radical da governança global democrática e da solidariedade entre os povos e entre as espécies, uma sociedade, portanto, não-antropocêntrica e, por isso, muito mais resiliente.
Sem tais mudanças de paradigma, não há chance de adaptação ao deslocamento de 300 milhões de refugiados climáticos apenas nos seis países asiáticos acima mencionados. Esse é apenas um exemplo do que se deve entender por colapso socioambiental. Há muitos outros, incluindo o colapso iminente da floresta amazônica, caso a Blitzkrieg de Bolsonaro contra a floresta e seus povos não seja detida.
IHU On-Line – Qual a relação da pandemia com o colapso ambiental?
Luiz Marques – A pandemia é outro fator de aceleração dos desastres socioambientais de nossos dias. O saldo de mortes notificadas pelos países em inícios de maio de 2021 era da ordem de pouco mais de três milhões de pessoas. Mas cálculos baseados em sobremortalidade mostram um balanço muitíssimo pior. Segundo Samira Asma, subdiretora geral do monitoramento de dados da OMS, “cerca de seis a oito milhões de pessoas” sucumbiram à Covid-19 ou aos seus efeitos colaterais. Sempre segundo a OMS, no Brasil as mortes até inícios de maio seriam da ordem de 617 mil, contra os pouco mais de 400 mil, segundo as notificações governamentais. Em 13 de maio, uma estimativa de 7,1 milhões de vítimas fatais globais foi proposta pelo Institute for Health Metrics and Evaluation – IHME de Washington. Não se integram nessas estimativas os efeitos do chamado “Covid-19 longo”, ou seja, os efeitos de longo prazo da pandemia sobre a saúde pública. Os impactos dessas mortes, em termos psicológicos e emocionais, mas também econômicos e de desagregação do tecido social, são imensos e suas consequências serão imensas. [21] A pandemia é em boa medida um efeito secundário do colapso socioambiental em curso, pois uma numerosa literatura científica demonstra que o aquecimento global, o desmatamento e a dieta carnívora aumentam as probabilidades de epidemias ou pandemias similares à atual. [22]
A Amazônia, que perdeu cerca de 800 mil km2 de cobertura florestal em 50 anos, tornou-se, em sua porção sul e leste, uma paisagem desolada de pastos em vias de degradação. O caos ecológico produzido pelo desmatamento por corte raso de cerca de 20% da área original da floresta, pela degradação do tecido florestal de pelo menos outros 20% e pela grande concentração de bovinos na região cria as condições para tornar o Brasil um “hotspot” das próximas zoonoses. [23]
Em primeiro lugar porque os morcegos são um grande reservatório de vírus e, entre os morcegos brasileiros, cujo habitat são sobretudo as florestas (ou o que resta delas), circulam pelo menos 3.204 tipos de coronavírus. [24] Em segundo lugar porque, como mostraram Nardus Mollentze e Daniel Streicker, [25] os bois, pertencentes ao grupo taxonômico dos Artiodactyla (de casco fendido), hospedam, juntamente com os primatas, mais vírus potencialmente zoonóticos do que seria de se esperar entre os grupos de mamíferos. A Amazônia será possivelmente o berço de novas pandemias virais, assim como já é um “hotspot” de epidemias não virais, como a leishmaniose e a malária, doenças tropicais negligenciadas, mas com alto índice de letalidade. Como afirma a OMS, “a leishmaniose está associada a mudanças ambientais, tais como o desmatamento, o represamento de rios, a esquemas de irrigação e à urbanização”, [26] fatores que concorrem hoje, ao mesmo tempo para a destruição da Amazônia e para o aumento do risco de pandemias. A relação entre desmatamento amazônico e a malária foi bem estabelecida em 2015 por uma equipe do IPEA: para cada 1% de floresta derrubada por ano, os casos de malária aumentam 23%. [27]
IHU On-Line – Na entrevista que o senhor concedeu ao IHU em 2017, o senhor alertava sobre a aceleração da devastação das florestas. De lá para cá, o que mudou no Brasil e no mundo?
Luiz Marques – A diferença entre a situação de 2017 e a de 2021 pode ser definida como a diferença entre o mal relativo e o mal absoluto. Por preocupante que fosse, a situação da floresta amazônica em 2017 era incomparavelmente melhor que a situação dos últimos dois anos, após a eleição de Bolsonaro, seguramente a maior calamidade que se abateu sobre o Brasil desde o hediondo golpe militar de 1964. Quando se trata de examinar a aceleração do desmatamento na Amazônia brasileira entre 2017 e 2020, a Figura 4 é mais eloquente que mil palavras.
Figura 4 – Evolução do desmatamento por corte raso de florestas primárias na Amazônia brasileira entre 1988 e 2020. (Fonte: INPE)
Era clara a nova aceleração do desmatamento amazônico entre agosto de 2012 e julho de 2017. O ritmo mais intenso dessa destruição, como também a do Cerrado naqueles anos, resultou da execrável aliança de Dilma Rousseff com o que havia de mais retrógrado na economia brasileira, personificado na figura de Kátia Abreu, presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil – CNA no triênio 2008-2011 e ministra da Agricultura do governo Dilma entre 2014 e 2016. Nada se compara, contudo, ao ecocídio perpetrado por Bolsonaro, para quem a destruição do que resta do patrimônio natural brasileiro tornou-se um programa de governo e uma verdadeira obsessão.
Entre agosto de 2018 e julho de 2019, o desmatamento amazônico atingiu 10.129 km2, um salto de 34% acima dos 12 meses anteriores e o pior resultado desde 2008, segundo o INPE. No primeiro trimestre de 2020, que apresenta tipicamente os níveis mais baixos de desmatamento em cada ano, o sistema Deter, do INPE, detectou um aumento de 51% em relação ao mesmo período de 2019, o nível mais alto para esse período desde o início da série, em 2016. Segundo Tasso Azevedo, coordenador-geral do Projeto de Mapeamento Anual da Cobertura e Uso do Solo no Brasil – MapBiomas, “o mais preocupante é que no acumulado de agosto de 2019 até março de 2020, o nível do desmatamento mais do que dobrou”. [28] Em abril de 2021, segundo o Imazon, o desmatamento atingiu um novo pico para este mês nos últimos 10 anos e representa uma alta de 45% na comparação com abril de 2020. [29] Bolsonaro está levando o país a um salto sem retorno no caos ecológico, de onde a necessidade imperiosa de neutralizá-lo por impeachment ou por outro mecanismo constitucional disponível.
Luiz Marques – O capitalismo globalizado caracteriza-se por criar, ao mesmo tempo, desigualdades socioeconômicas abissais e uma crescente pressão antrópica sobre o sistema Terra. Esses dois fatores se ampliam reciprocamente, de modo que justiça socioeconômica e justiça ambiental são processos interdependentes e complementares. A premissa que deve orientar qualquer projeto de transformação de nosso país (e do mundo) pode ser expressa na seguinte fórmula: não é concebível qualquer diminuição significativa dos impactos ambientais antrópicos sem diminuição da desigualdade. E vice-versa. Não é possível imaginar, em suma, uma sociedade ambientalmente sustentável sem viabilizar a toda a população do planeta o acesso à infraestrutura sanitária, à segurança alimentar e hídrica, a uma agricultura não destrutiva das florestas e dos ecossistemas que a sustentam, ao planejamento familiar, à interrupção voluntária da gravidez assistida pelo Estado, à informação científica e humanista, à tecnologia e a energias renováveis e de baixo carbono.
AGRADECIMENTO
A OTC dirige ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, um agradecimento especial pela autorização concedida para a republicação no nosso site da entrevista concedida pelo autor ao IHU, e manifesta o seu apreço ao Professor Luiz Cesar Marques Filho pela lição contida na entrevista. O nosso apreço também pelo excelente trabalho do entrevistador Ricardo Machado.