Em defesa da ONU

 NAÇÕES UNIDAS:
SINAIS DE CRESCENTE IRRELEVÂNCIA
Mehdi Lahlou e Frederico Carvalho
98º Conselho Executivo da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos
Paris, França, 09-13 Junho 2025
Contribuição para o debate no

Grupo de Trabalho 1: “Paz, Desenvolvimento e Cooperação”

Criada após a Segunda Guerra Mundial para preservar a paz mundial e promover a cooperação internacional, a Organização das Nações Unidas parece ser hoje cada vez mais marginalizada e completamente impotente perante os grandes desafios contemporâneos.
Longe do ímpeto fundador de 1945, a organização vive agora três crises: legitimidade, eficácia e representatividade.

Vários factos convergentes justificam esta observação mais do que preocupante.

  1. Impotência perante grandes conflitos

Quer se trate da guerra na Ucrânia, da guerra em Gaza e o conflito mais vasto Israel-Palestina, ou das tensões recentes entre Índia e Paquistão, entre outros casos, a ONU não se mostra capaz de impedir guerras ou de impor um cessar-fogo duradouro, muito menos um regresso à paz. O Conselho de Segurança, paralisado pelo poder de veto das grandes potências — lideradas pelos Estados Unidos da América e pela Federação Russa — tornou-se palco de fúteis confrontos diplomáticos e, por vezes, de provocações por parte de Estados envolvidos em conflitos sangrentos.
Resoluções, meticulosamente negociadas, são frequentemente bloqueadas, esvaziadas da sua substância ou ignoradas na prática. Este impasse sistemático acabou por transformar a ONU numa mera espectadora das tragédias que deveria ajudar a impedir, se não mesmo prevenir.

  1. Uma Crise de Representatividade

A actual estrutura da ONU reflecte uma ordem mundial herdada de 1945, hoje largamente ultrapassada. A falta de representação permanente de regiões inteiras no Conselho de Segurança — particularmente da África, América Latina e mundo Árabe-Muçulmano — põe em causa a legitimidade e a potencial eficácia das suas decisões.
Esta configuração perpetua um desequilíbrio geopolítico em que os interesses do Norte Global continuam a prevalecer sobre os do Sul Global, frequentemente marginalizados nas principais negociações internacionais. Isto alimenta um duplo padrão prejudicial, em desacordo com o direito internacional, que supostamente se baseia no princípio da igualdade entre as nações, independentemente do seu peso demográfico ou económico.

  1. Ineficácia, e mesmo impotência, face a emergências globais

Quando se trata de desafios planetários — crise climática, pandemias, desigualdades sociais, migração forçada, ameaças nucleares, desarmamento — a ONU é lenta, fragmentada e frequentemente limitada a declarações de intenção sem medidas vinculativas e, portanto, sem impacto.
As principais conferências do clima (COPs) são um exemplo claro: acordos laboriosamente alcançados, compromissos não cumpridos, financiamento insuficiente, frequentemente prometido, raramente entregue. Da mesma forma, os esforços de desarmamento estão estagnados – ou mesmo a regredir – enquanto os arsenais nucleares são modernizados e as doutrinas de utilização estão a tornar-se cada vez mais opacas e ameaçadoras.

  1. Burocratização e perda de influência em todas as áreas

A instituição tornou-se um gigantesco aparelho burocrático, por vezes opaco, que se presta a acusações de desperdício, de ineficácia e até de complacência com certos regimes autoritários.
No terreno, as agências da ONU estão frequentemente constrangidas por limitações de mandato ou dependem da boa vontade de certos Estados-membros, principalmente os Estados Unidos e a Federação Russa. O resultado é uma perda significativa de credibilidade junto das populações que dela esperam uma protecção real.

Deveremos então abandonar a ideia de uma ONU?

Não necessariamente. Pois, se a ONU está a sofrer, não é tanto em razão dos seus princípios originais, mas pela forma como os Estados a manipulam ou a utilizam para servir os seus próprios interesses ou os dos seus aliados. Continua a ser o único fórum universal para o diálogo entre as nações, um espaço onde o direito internacional ainda está em desenvolvimento, por mais imperfeito que seja. Agências especializadas — OMS, UNESCO, FAO, PNUD, ACNUR, etc. — desempenham ainda um papel valioso em muitas áreas (cultura, educação, combate à pobreza, erradicação da fome, combate a epidemias, etc.).
Mas uma profunda reformulação da sua estrutura e funcionamento é agora essencial. Algumas reformas possíveis incluiriam:

  • Reforma do Conselho de Segurança alargando a participação de países do chamado “Sul Global” e limitando ou suspendendo o direito de veto, em particular no caso de atrocidades em massa ou que o Tribunal Penal Internacional defina como crimes de genocídio;
  • Reforço da autonomia financeira da ONU e das suas agências de forma a limitar a sua dependência das grandes potências;
  • Tornar irrevogáveis e vinculativos para os Estados, compromissos assumidos, designadamente no que respeita ao clima, à paz e ao respeito pelos direitos humanos;
  • Aumento do envolvimento na governação da ONU, da sociedade civil global, particularmente de cientistas de todas as disciplinas, para evitar confrontos diplomáticos entre Estados.

Tudo isto sugere que é absolutamente necessário inventar ou reinventar uma forma de governação global verdadeiramente assente no direito e na justiça. As críticas à ONU não devem alimentar o fatalismo ou o recuo nacionalista, mas antes abrir caminho a uma transformação ambiciosa do multilateralismo, com a colaboração de todos, em particular dos cientistas que trabalham a favor da paz. Perante as ameaças existenciais globais, a humanidade necessita de instituições globais fortes, democráticas e fiáveis. A alternativa não seria uma ONU mais pequena, mas sim uma ONU melhor ou, na sua ausência, novas instituições internacionais capazes de defender verdadeiramente a paz, a justiça social e a sobrevivência humana face aos desafios ecológicos.

Mehdi Lahlou e Frederico Carvalho
26 de Maio de 2025

NOTA OTC: Frederico Carvalho (OTC e FMTC) e Mehdi Lahlou (FMTC), coordenam o Grupo de Trabalho 1 da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos. O primeiro é Investigador-coordenador (aposentado) do Centro de Ciências e Tecnologia Nucleares, IST, Univ. de Lisboa. Mehdi Lahlou é professor de Economia no Instituto Nacional de Estatística e Economia Aplicada (INSEA), Rabat, Marrocos, e professor associado na Universidade Mohammed V (Rabat).

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