
A GUERRA HÍBRIDA
Frederico Carvalho e Mehdi Lahlou*
98º Conselho Executivo da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos
Paris, França, 09-13 Junho 2025
Contribuição para o debate no
Grupo de Trabalho 1: “Paz, Desenvolvimento e Cooperação”
A face da guerra mudou. Os avanços científicos e tecnológicos, que se aceleraram ao longo do último meio século, levaram ao desenvolvimento de diversas tecnologias ditas disruptivas, que são hoje exploradas como arma, desde logo pelas potências dominantes e as suas forças armadas. Isto confirma, uma vez mais, a natureza ambivalente do progresso científico. O problema não está na ciência em si, mas antes na organização da sociedade, que tanto pode dela fazer mau uso como tirar partido para satisfazer necessidades fundamentais do conjunto dos seus membros. Assim, importa que os trabalhadores científicos, em particular aqueles que se identificam como activistas da Paz, estejam conscientes destes factos para poder suscitar — e de facto suscitem —nos seus concidadãos, a consciência de que o conhecimento científico deve ser preservado como um bem comum da humanidade procurando ao mesmo tempo denunciar e lutar pela proibição das suas aplicações incorrectas, perigosas e letais. Será particularmente importante desenvolver iniciativas que não só despertem a curiosidade das gerações mais jovens em relação ao progresso científico e tecnológico, mas também a tomada de consciência dos impactos sociais negativos daquelas aplicações erradas e perigosas.
A ciência aplicada à guerra consome cada vez mais recursos humanos, materiais e financeiros. E está a transformar a face da guerra. Falamos de tecnologias disruptivas e de guerra híbrida.
O conceito de guerra híbrida é utilizado para descrever uma série de conflitos que envolvem uma combinação de tácticas militares convencionais e estratégias modernas, tais como guerra cibernética, manipulação de informações, disrupção económica, operações psicológicas, e até mesmo terrorismo ou actividades criminosas num espaço operacional alargado. Trata-se de um espaço que vai muito para além do que é tradicionalmente considerado como o “campo de batalha” ou “teatro de operações”, abrangendo não só as populações da zona de conflito, mas também a comunidade internacional no seu todo. Quanto ao inimigo, por assim dizer, pode incluir actores estatais e não estatais.
As tecnologias disruptivas são amplamente utilizadas na guerra híbrida. Lasers de alta potência e radiação electromagnética de alta energia podem ser utilizados para destruir satélites em órbita terrestre e bloquear redes de comunicação de todos os tipos, sejam civis ou militares. Satélites em rede são usados na recolha de informações e têm-se mostrado especialmente “úteis” em operações militares, oferecendo capacidades de transmissão de dados e de vigilância em tempo real.
Fala-se em satélites suicidas capazes de transportar uma pequena carga nuclear e detoná-la perto de outros satélites para os destruir. Os avanços na inteligência artificial permitiram a criação de armas robóticas capazes de realizar acções destrutivas sem intervenção humana: são os chamados Sistemas de Armas Autónomas Letais (LAWS).
As aplicações avançadas de inteligência artificial (IA) são utilizadas para identificar e marcar alvos a destruir, interpretando dados de vários sensores, frequentemente, mas não exclusivamente, infravermelhos, térmicos e radar. Permitem e são utilizadas para a identificação precisa de alvos humanos através do reconhecimento facial. As chamadas forças de “defesa” israelitas têm utilizado esta tecnologia em Gaza. Os drones, amplamente utilizados na Ucrânia, por exemplo, estão a evoluir, ganhando novas qualidades e capacidades através da IA, que permite até o “enxame” — envolvendo vários drones a operar em conjunto para atingir um objectivo comum, muitas vezes com uma intervenção humana mínima.
Avanços significativos no campo da edição genética permitem a criação de vírus infecciosos geneticamente modificados, capazes de alterar directamente os cromossomas de culturas nos campos, nomeadamente culturas alimentares. Os avanços na cibernética, cruciais para o desenvolvimento dos sistemas robotizados, permitem interferir no funcionamento de sistemas e mecanismos automáticos de controlo, regulação e comunicação, podendo, através de ciberataques, paralisar infra-estruturas civis vitais, como centrais eléctricas.
As sanções económicas e o bloqueio do fornecimento regular de alimentos ou medicamentos, por exemplo, são também formas de guerra híbrida a que, infelizmente, assistimos hoje. A fome é utilizada como arma de guerra. Isto está a acontecer actualmente em Gaza. Há também exemplos históricos destas práticas desumanas. Um caso notável é o do cerco nazi a Leninegrado, que durou 872 dias e resultou na morte de um milhão de pessoas.
A isto acresce uma tendência preocupante de crescente privatização das tecnologias de guerra. Cada vez mais, as empresas privadas estão a desenvolver, controlar e vender ferramentas de vigilância, software de espionagem ou sistemas de armas inteligentes. Esta externalização de funções soberanas para entidades comerciais privadas coloca um sério problema à democracia, pois muitas vezes escapa a qualquer supervisão cidadã ou parlamentar. O segredo comercial substitui o debate público e a lógica do lucro sobrepõe-se à da Paz. Além disso, a banalização do discurso tecnológico e o fascínio pela inovação constante obscurecem a questão essencial da ética. Muito poucos espaços institucionais permitem hoje um debate significativo sobre os objectivos da investigação científica. E, no entanto, para que a ciência progrida, deve fazê-lo com consciência. A responsabilidade de investigadores, engenheiros, decisores políticos e económicos, é enorme. É tempo de estabelecer salvaguardas claras e universais para as aplicações militares das novas tecnologias, no mesmo espírito do que já foi tentado com as armas químicas e nucleares.
Cremos que as considerações acima expostas podem valer como um saudável “incentivo à reflexão” — ou seja, são dignas de uma reflexão séria. Em causa não está apenas o futuro da ciência, mas o futuro da própria humanidade.
NOTA OTC: Frederico Carvalho (OTC e FMTC) e Mehdi Lahlou (FMTC), coordenam o Grupo de Trabalho 1 da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos. O primeiro é Investigador-coordenador (aposentado) do Centro de Ciências e Tecnologia Nucleares, IST, Univ. de Lisboa. Mehdi Lahlou é professor de Economia no Instituto Nacional de Estatística e Economia Aplicada (INSEA), Rabat, Marrocos, e professor associado na Universidade Mohammed V (Rabat).
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Artigo na página institucional da FMTS-WFSW:
EN: https://fmts-wfsw.org/2025/07/hybrid-warfare/?lang=en
FR: https://fmts-wfsw.org/2025/07/des-guerres-hybrides/
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