Investigação e Inovação: um ecossistema, duas lógicas

A INVESTIGAÇÃO NAS MALHAS DE UMA INOVAÇÃO ARMADILHADA

O País é gerido com imaginação e preciosa criatividade que em certos momentos avulta e capta a atenção dos cidadãos que se sentem visados nas suas esferas de actividade e nas suas vidas por decisões inesperadas de governantes que se dispensam a si próprios de buscar prévia orientação, consultadoria ou simples auscultação dos governados que terão de submeter-se às novas regras.

Assim acontece a anunciada estreia de uma nova Entidade Pública Empresarial que tratará de fazer ascender investigação e inovação (tecnológica) na nossa terra ao que de melhor se faz lá fora, apesar de isso já acontecer em vários domínios graças à capacidade intelectual, ao esforço e dedicação de um vasto número de profissionais que integram a comunidade científica nacional. O rigor que os autores desta nova construção põem no seu trabalho e a sua extraordinária capacidade de previsão salta à vista. Por exemplo, quando fixam na lei o valor do capital estatutário da nova empresa. Exactamente, cinco milhões cento e setenta e seis mil trezentos e setenta e seis euros e… 50 cêntimos!

Pois bem, é manifesta a incompreensão de muitos nossos concidadãos que se manifestam críticos da orientação superior que lhes é facultada. Muitos, conceituados membros da comunidade científica nacional, conceituados e respeitados.

Investigação e inovação coexistem, mas não podem ser conduzidas pela mesma orientação política. A investigação exige tempo, estabilidade e liberdade académica; responde a uma lógica de conhecimento, não de mercado. Já a inovação opera sob metas imediatas, competitividade e aplicação prática.

Confundir estas lógicas leva a políticas que sacrificam a investigação fundamental em nome de resultados rápidos. Um sistema científico equilibrado reconhece esta diferença: apoia a inovação quando necessário, mas protege a investigação da pressão produtivista, garantindo que a ciência permanece um bem público e não um instrumento meramente utilitário.

No decurso das últimas semanas têm sido vários a pronunciar-se sobre a iniciativa do governo de que aqui falamos. Conhece-se uma Petição Pública com mais de 1500 subscritores e várias tomadas de posição públicas.

Interessa-nos transcrever aqui a que se apresenta com o título “Investigação e Inovação: um ecossistema, duas lógicas”.

Investigação e Inovação: um ecossistema, duas lógicas

Numa era obcecada pelo retorno económico rápido, a pergunta “para que serve a investigação?” é frequentemente respondida de forma redutora: é um motor de crescimento económico. Esta visão é perigosamente incompleta. Ironicamente, a melhor prova de que o verdadeiro impacto social e económico é profundo e de longo prazo surge de relatórios que analisam esse mesmo impacto. O recente estudo da Universidade de Lisboa, que avalia o ecossistema das suas startups em mais de 24 mil milhões de euros, não é um retrato do imediatismo; é a validação de um investimento de décadas, cuja origem está na investigação de base e na formação avançada.

O verdadeiro valor da investigação não é meramente económico, nem imediato, nem geograficamente localizado. O valor é vasto, profundo, multifacetado, opera em escalas temporais que transcendem calendários políticos e numa lógica global. Resultados científicos obtidos num qualquer país há décadas podem ser usados para inovação de alto impacto num outro país; há inúmeros exemplos, desde a inteligência artificial, cujas raízes têm muitas décadas e se espalham pelo mundo, até as tecnologias quânticas. Reduzir o ecossistema científico à sua função de inovação e subalternizar a investigação de base a essa lógica é um erro estratégico que pode comprometer o futuro. A investigação serve a sociedade em múltiplas frentes, sendo claro que opera numa lógica fundamentalmente diferente da inovação.

  • A investigação (até hoje o domínio da FCT) é movida essencialmente pela É paciente, imprevisível e inevitavelmente incerta e arriscada, mas com alto retorno potencial. O seu objectivo é o conhecimento, e o seu retorno pode demorar décadas.

 A Inovação (o domínio da ANI) é movida por necessidades. É focada, rápida e orientada para o O seu objectivo é um produto ou serviço, e o seu retorno é (idealmente) económico, a curto prazo e menos incerto.

Fundir as duas agências numa só força estas duas lógicas a competir. É inevitável que a urgência do retorno económico da inovação sufoque a paciência necessária à ciência fundamental.

A Europa compreende esta distinção. O modelo europeu baseia-se na especialização e complementaridade. A União Europeia tem o European Research Council (ERC) para a investigação fundamental e o European Innovation Council (EIC) para a inovação aplicada. São dois pilares articulados, mas distintos. A nova proposta orçamental da UE reforça isto: o Horizonte Europa foca-se na investigação, enquanto um novo Fundo Europeu de Competitividade apoiará a industrialização e a entrada no mercado.

O modelo de agências separadas não é uma excepção; é a norma quase consensual nos sistemas científicos mais avançados do continente:

A Alemanha mantém a Deutsche Forschungsgemeinschaft (DFG) para a ciência e agências como o BMBF para a inovação.

  • A Suíça separa rigorosamente a Swiss National Science Foundation (SNSF) da agência de inovação Innosuisse.
  • A Espanha distingue a Agencia Estatal de Investigación (AEI) do Centro para el Desarrollo Tecnológico y la Innovación (CDTI).
  • Nos países nórdicos, a Dinamarca (DNRF/IFD), a Suécia (Vetenskapsrådet/Vinnova) e a Finlândia (Research Council/Business Finland) seguem a mesma lógica de separação.
  • Os Países Baixos, a Bélgica e a Itália mantêm os seus principais financiadores de ciência fundamental (como o NWO nos Países Baixos ou o FWO/FNRS na Bélgica) institucionalmente separados dos mecanismos de apoio à inovação e ao desenvolvimento empresarial (como o TNO ou a VLAIO).
  • França, Áustria, Polónia e Chéquia seguem o mesmo padrão, separando a ciência de base (ANR em França, FWF na Áustria, NCN na Polónia, GAČR na Chéquia) da inovação aplicada (Bpifrance, FFG, NCBR, TAČR, respetivamente).

Estes países não o fazem por acaso. Fazem-no para proteger a investigação da lógica de curto prazo da inovação. A independência da investigação de base—não só da lógica de mercado, mas também dos ciclos políticos—é ativamente protegida. Na Alemanha e na Suíça, possivelmente os dois países europeus com maior sucesso em transferência de conhecimento científico para o tecido económico,a DFG e o SNSF não são sequer agências governamentais, mas sim fundações de direito privado, auto-governadas por cientistas, para garantir que as decisões de financiamento se baseiam no mérito científico e não na conveniência política.

O contra-exemplo mais relevante para este debate é o do Reino Unido e a sua agência unificada, a UK Research and Innovation (UKRI), criada em 2018. As avaliações formais subsequentes servem como um aviso prático. Relatórios como o do National Audit Office (NAO) e do Public Accounts Committee (2025) concluíram que a UKRI falhou nos seus objectivos centrais. Em vez de um líder estratégico, a fusão criou uma entidade burocrática, avessa ao risco (“menos ousada”) e sem foco, que mal consegue integrar os “silos” das organizações que foram objecto da fusão. O dado mais demolidor: a agência tem de responder a 105 prioridades políticas distintas, vindas de 13 departamentos governamentais. Este cenário demonstra o perigo real de uma fusão: a investigação fundamental, de longo prazo, é inevitavelmente subjugada por exigências políticas e económicas de curto prazo. A tutela partilhada destrói o foco e a coerência da organização.

As universidades e os centros de investigação são muito mais do que fábricas de startups; são o ecossistema que gera conhecimento, forma talento crítico e sustenta a democracia. Para que continuem a fazê-lo, a solução passa por financiamento estável, previsível e autonomia necessária para explorar o desconhecido. Só assim teremos mais ciência e um futuro melhor.

Portugal enfrenta uma escolha. Podemos seguir o exemplo do Reino Unido, optando por uma fusão que, na prática, arrisca a ser um processo jurídico-administrativo de elevada complexidade e a comprometer décadas de progresso ao criar um sistema burocrático e sem foco. Podemos seguir o caminho da Europa e dos nossos pares mais competitivos, reforçando a cooperação entre uma FCT reestruturada e modernizada e uma ANI robusta e independente.

É nosso parecer que, neste caminho alternativo a proposta de diploma do Governo poderia ser a base para a reforma da FCT que é necessária e urgente.

 17 de novembro de 2025

 Alexandre Quintanilha, Amílcar Falcão, António Sousa Pereira, Cristina Rodrigues, Jorge R. Costa, Luís Ferreira, Manuel Sobrinho Simões, Maria de Lurdes Rodrigues, Mário Figueiredo, e Rui Vieira de Castro