Carreira em Processo de Revisão

Parecer e Contributos relativos à Proposta de Lei n.º 24/XVI/1.ª (GOV)
Colocada em Apreciação pública

CONTRIBUIÇÃO GENÉRICA

INTRODUÇÃO
A presente Proposta de Lei relativamente à qual é solicitado o parecer desta Organização, tem por base a Proposta de Lei 305/XXIII/2023 do XXII Governo Constitucional, aprovada em Reunião do Conselho de Ministros de 25 de Março de 2024 e, no essencial, dela se não afasta significativamente quer no espírito quer na letra.
Assim, a apreciação genérica que aqui é feita segue também no essencial, e não se demarca nas suas linhas gerais, do Parecer emitido em Julho último pela OTC, que então correspondia à solicitação recebida da Secretaria de Estado da Ciência, por indicação da respectiva titular Professora Doutora Ana Paiva.

O FULCRO DO PROBLEMA
Em nossa opinião, as duas questões fulcrais que se colocam, ao Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia, são a da precariedade laboral, experimentada por uma larga maioria do pessoal investigador afecto ao sector público, e a persistente condição de subfinanciamento do Sistema. Dir-se-á que esta última não mostra uma relação directa imediata com a estrutura e disposições específicas que enformam o Estatuto da Carreira de Investigação Científica; entretanto, já o mesmo não acontece com a questão da precariedade estrutural a que o Sistema vem sendo condenado.
Entendemos que o Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei n.o 124/99, de 20 de Abril, posteriormente retocado em sede de apreciação parlamentar — Lei no. 157/99, de 14 de Setembro, hoje em vigor — ao alterar a estrutura da Carreira que veio substituir, abriu a porta, a partir da primeira década deste século, ao desmesurado crescimento das situações de precariedade laboral com a normalização do regime de bolsas, fonte provisória e incerta de rendimento do investigador, marcando com um forte selo de instabilidade os seus percursos de vida profissional e familiar.
Hoje, estima-se que cerca de 80% do total dos efectivos de pessoal investigador do sector público se encontra em situação de precariedade laboral. Uma tal situação introduz limitações sérias à capacidade de tirar todo o partido do potencial científico e tecnológico nacional no sentido da satisfação de prementes necessidades económicas, sociais e culturais do País.
Em nosso entender, a Proposta de Lei em apreço, os seus termos e as medidas propostas, em nada contribuirão para alterar a situação descrita vivida no universo que observamos. Algumas constituem um retrocesso, outras têm um alcance mal definido ou de difícil concretização.
No contexto de que aqui de trata, importa dizer que é errado fazer passar como “estudante” um investigador não-doutorado. É uma forma hábil de abrir caminho à aceitação de emprego precário a que se irá sujeitar uma mão-de-obra qualificada de baixo custo.
Investigadores, doutorados ou não doutorados, são trabalhadores da ciência e devem beneficiar, como trabalhadores que são, do regime estabelecido na Legislação Geral do Trabalho ou na do Trabalho em Funções Públicas, nos casos em que o empregador é público.

A REVISÃO DA CARREIRA; UMA FALSA SOLUÇÃO PARA O PROBLEMA DA PRECARIEDADE
No preâmbulo da Proposta de Lei em apreço, intitulado “exposição de motivos”, procura-se justificar a necessidade de rever a Lei nº157/99, já referida, que aprovou o Estatuto da Carreira de Investigação Científica, ainda em vigor. Entre 1980 e o presente, o Estatuto de Carreira foi alterado ou regulamentado em oito diferentes ocasiões. Em nosso entender, em todos os casos, à excepção do mais recente, de forma pertinente, justificada e pacífica, mantendo-se a estruturação inicial da carreira desdobrada em cinco categorias. Em 1999 a carreira aparece amputada, com a supressão das duas categorias de entrada.
Na “exposição de motivos” é feita uma clara apologia das virtudes da desejada revisão do Estatuto, podendo ler-se que: “Este novo instrumento permitirá (…) reduzir a precariedade e promover a estabilidade e a previsibilidade laboral de doutorados e dos respetivos vínculos, bem como das suas linhas de investigação”; e ,ainda, que o novo Estatuto “.consubstancia um instrumento central na consolidação do sistema científico nacional, criando um horizonte de carreira mais atrativo, previsível e sustentável para investigadores em ciclos iniciais de carreira”.
A questão está em que a leitura das disposições plasmadas no articulado da Proposta de Lei, não permite antever de que forma a implementação desta, possa, de algum modo, conduzir aos resultados que a exposição de motivos antecipa.
Qualquer Estatuto de Carreira não é por si só instrumento de combate à precariedade. A precariedade que hoje se vive no seio da comunidade científica não se resolve ou sequer atenua com qualquer milagrosa revisão de um Estatuto de Carreira. Como não é também uma revisão do Estatuto de Carreira que irá permitir (citamos a “exposição de motivos”: “reforçar a capacidade de Investigação, Desenvolvimento e Inovação do País, (…) , de promoção do conhecimento científico e de compreensão pública da ciência” (!). É preciso não confundir as coisas: precariedade e reforço da capacidade de ID&I do País, combate-se com integração de investigadores na carreira, aquisição e renovação dos meios de trabalho necessários e definição de uma política científica nacional que responda às necessidades económicas, sociais e culturais do País.

A CARREIRA DE CINCO CATEGORIAS
A integração de investigadores na carreira deve ser alargada a “aspirantes a investigador”, ou “investigadores em formação” ou “investigadores juniores”, como se queira. Nestes as habilitações exigíveis são a licenciatura ou o mestrado.
Assim, a OTC defende o regresso a uma estrutura de Carreira para a Investigação Científica com cinco categorias, tal como definida no Decreto-Lei 219/92 de 15 de Outubro (XII Governo Constitucional)[i]. As duas primeiras categorias, dadas como integrando a Carreira de Investigação Científica — Estagiário de Investigação e Assistente de Investigação —eram definidas como categorias de formação (fase de formação da carreira), nas quais a permanência era limitada temporalmente, conferindo ao período correspondente carácter probatório, com esquemas de avaliação institucionalizados (acompanhamento e provas).
Tudo era assim diferente no que respeita a segurança social e de rendimentos, e de previsibilidade de futuro, atenta a qualidade do desempenho profissional.
Importa referir que, nos termos do Decreto-Lei 219/92, (citamos):
Os estagiários de investigação são recrutados por concurso documental, complementado por entrevista ao candidato, de entre licenciados ou diplomados com curso superior equivalente que satisfaçam os demais requisitos constantes do respectivo aviso, a publicar no Diário da República.”

O CASO DOS LABORATÓRIOS DO ESTADO
Nos laboratórios do Estado, onde hoje se encontra a maioria dos investigadores de carreira, a situação não é boa e em alguns casos claramente má, em particular no que toca a recursos humanos. A carreira de cinco categorias tornaria normal um modo de acesso à profissionalização na carreira com importantes vantagens nas circunstâncias do nosso sistema científico e técnico, pois permite às instituições de investigação recrutar jovens licenciados e formá-los no seu seio, moldando-os às exigências específicas do trabalho que cada instituição deve desenvolver para cumprir as missões que lhe foram atribuídas.
As missões e a natureza das actividades dos laboratórios e outras instituições públicas de investigação fora do âmbito do ensino superior, têm aspectos específicos que variam de instituição para instituição, e distinguem-se, no geral, claramente do caso universitário no que respeita à missão e actividades, designadamente, nas condições e exigências da prestação de serviços ao mundo exterior e da própria natureza e conteúdo da investigação que lhe deve dar suporte.
No actual regime, que a Proposta de Lei em apreço mantem, as instituições de investigação não universitárias deverão recorrer para o recrutamento do seu pessoal científico a um “pool” de doutores, na sua vasta maioria formados e confirmados no seio da Universidade. Os laboratórios, todavia, sentem de algum modo o mesmo que sentem as empresas que se interessam pouco por recrutar doutores porque devem desde logo pagar-lhes melhor, mas não reconhecem necessariamente uma real mais-valia dos candidatos doutores, na formação que esse grau académico lhes proporcionou. Preferem então recrutar licenciados sem outros graus académicos e ensinar-lhes na empresa o que eles devem saber para ser produtivos.

INVESTIGAÇÃO E DOCÊNCIA
O ECIC ainda em vigor (D.-L. 124/99) prevê, no que toca ao regime de prestação de serviço, que o pessoal investigador em regime de dedicação exclusiva — situação que, quanto a nós, deve ser privilegiada — possa prestar serviço docente em estabelecimento de ensino superior (e por tal ser remunerado) mediante certas condições, a saber: ”que daí não decorra prejuízo para o exercício de funções durante o período normal de serviço e que o serviço não exceda, em média anual, um total de quatro horas semanais de actividade lectiva”.
Também, neste particular, a formulação constante do Proposta em apreço, não merece a nossa concordância.
Não significa isto que desvalorizemos ou, ainda menos, que consideremos prejudicial, uma interacção regular do investigador com colegas discentes, alguns possivelmente mesmo futuros investigadores. Consideramos, sim, que uma actividade docente do investigador, preferencialmente informal e em contexto laboratorial, é importante e necessário estímulo para qualquer das partes. Opomo-nos, todavia, a que se trate de uma obrigação imposta contra a vontade expressa do investigador, logo a uma subordinação deste a abusos de poder que podem manifestar-se nos locais de trabalho.

O CASO DAS CHAMADAS INSTITUIÇÕES PRIVADAS SEM FINS LUCRATIVOS (IPs/FL)
As IPs/FL, no essencial, surgem formalmente e tornam-se nos últimos 20 anos instrumento de primeira importância no panorama do Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia. Poderá dizer-se que as condições se tornaram favoráveis a esse surgimento e evolução, sobretudo, a partir do que poderíamos designar por “reforma Mariano Gago” que se vai acompanhar de uma explosão dos chamados “bolseiros de investigação” como atrás sublinhámos. Estes fenómenos têm muito a ver com a situação de crónico subfinanciamento das IES e os condicionamentos à realização de despesas decorrentes da obrigatoriedade de respeitar as regras da contabilidade pública, e à própria execução orçamental.
Entretanto esta nova configuração da unidade de investigação, é favorável à ocorrência de situações de abuso de poder e de subordinação hierárquica susceptíveis de degradar ambientes de trabalho bem como de normalizar regras, directa e indirectamente, impeditivas da desejável participação dos interessados na gestão democrática das instituições. Convém referir que estas considerações são em boa medida extensivas às universidades que optaram pelo chamado regime fundacional ao abrigo das disposições do chamado RJIES (actualmente em processo de revisão).

O ANEXO II
Entendemos que a Proposta de Lei em apreço é uma construção híbrida que pretende regulamentar não uma, mas (pelo menos) duas Carreiras de Investigação Científica. A segunda, a que respeita o Anexo II, poderá descrever-se como uma tentativa inovadora sui generis de regulamentar “o estatuto das carreiras próprias de investigação científica em regime de direito privado”, adiantando-se que as disposições são de aplicação facultativa (“salvo quando imposto pelo projeto público financiador”) e se aplicam “aos investigadores contratados na modalidade de contrato de trabalho sem termo”. Acrescenta-se que “a contratação de investigadores na modalidade de contrato de trabalho a termo certo ou incerto (seria) realizada nos termos do Decreto-Lei n.º 57/2016, de 29 de agosto, na redação atual, ou nos termos do presente estatuto”.

Pode depreender-se, por exemplo, entre outras dúvidas suscitadas, que uma empresa, pública ou privada, que desenvolva normalmente actividades de I&DE e, um belo dia, receba fundos do Estado para um determinado projecto, logo irá colocar os investigadores a ele afectos na Carreira de Investigação Científica tal como regulamentada no Anexo II a que nos reportamos. Concluído o projecto (ou despendidos os fundos) voltaria ao seu normal.

Este Anexo II não parece ter futuro. O que reputaríamos necessário seria algo de natureza completamente diferente.
Assim, as carreiras dos investigadores das Instituições Privadas Sem Fins Lucrativos (IPSFL) detidas e/ou participadas pelas IES públicas, deveriam ser regidas pelo ECIC e os investigadores passariam a constar dos mapas de pessoal da IES correspondente, tal como acontece no caso das respectivas instituições (incluindo Laboratórios do Estado) com os investigadores de carreira que, estes, não representarão hoje mais do que cerca de 4 a 5% do número total de investigadores activos no Sistema. A despesa incorrida seria suportada pelo Orçamento de Estado (Receitas de Impostos). O mesmo aconteceria com Despesas correntes e de capital. Recorrendo neste caso também, como habitual, a Fundos europeus e Receitas próprias.

CONCLUSÃO
Em nosso entender, a Proposta de Lei n.º 24/XVI/1.ª (GOV), colocada em apreciação pública, que revê o Estatuto da Carreira de Investigação Científica, não dá garantias de contribuir de algum modo significativo para a resolução da chaga da precariedade laboral que atinge a vasta maioria dos investigadores activos no sector público ou formalmente privado do Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia, situação que se afigura ser um dos obstáculos maiores ao desenvolvimento saudável do Sistema no plano das condições de vida e trabalho dos seus agentes e, naturalmente, da sua produtividade.

A Direcção
15 de Novembro de 2024

NOTA FINAL
Embora o parecer da OTC sobre a Proposta de Lei em apreciação seja eminentemente negativo, entendeu-se fazê-lo acompanhar de alguns contributos específicos visando a alteração de certos artigos em particular que, a ser aceites, a melhorariam. Os artigos da Proposta de Lei em questão são os seguintes: Artigo 2º, nº2 (Anexo I) e Artigo 2º, nº2 (Anexo II); Artigo 29º (Anexo I) e Artigo 14º (Anexo II).
O Parecer genérico e as propostas relativas a artigos específicos podem ser consultadas no site https://www.parlamento.pt/sites/com/XVILeg/8CEC/Paginas/ContributosIniciativasII.aspx?ID_Ini=148.
A Proposta de Lei encontra-se neste momento em discussão na especialidade na 8º Comissão Parlamentar (Educação e Ciência).

20 de Fevereiro de 2025

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[i] XII Governo Constitucional (31/10/1991 a 31/19/1995) — Aníbal Cavaco Silva, Luís Valente de Oliveira, Manuel Fernandes Thomaz.