
O novo estatuto de bolseiros: o móbil, o ardil e a sua ambiguidade
Os anunciados desígnios governamentais de diminuir a precariedade no sistema científico e tecnológico nacional e de reverter uma situação insustentável da continuidade temporal de bolsas de investigação, conduz-nos ao novo Estatuto do Bolseiro de Investigação aprovado pelo Decreto-Lei n.º 123/2019, de 28 de Agosto. Define-se neste DL o regime de subsídios atribuídos por entidades de natureza pública ou privada, destinados a financiar a realização de actividades de investigação de bolseiros quer sejam ou não doutorados. São assim estabelecidas três tipologias de Bolsas de Investigação, que se destinam a subsidiar trabalhos de i) iniciação à investigação (BII); ii) de investigação (BI) associados à obtenção de graus e diplomas do ensino superior (mestrado e doutoramento); e iii) investigação por doutorados, ou seja pós-doutoramento (BPD).
A duração das bolsas passou a ser definida. A duração das BII não poderá ser inferior a 3 meses nem superior a 1 ano, enquanto as BI estão limitadas à duração dos ciclos académicos, 2 anos para obtenção de diploma de Mestrado e de 4 anos para Doutoramento. As BPD estão limitadas a 3 anos sem possibilidade de prorrogação ou de nova candidatura.
Embora uma clarificação, à partida fosse mais do que desejada, o novo DL 123/2019 não diminui a precariedade, não altera regimes de contratação nem garante benefícios sociais adicionais, o que é o mesmo que dizer que não dignifica a actividade e muito menos a torna apelativa. Diremos até que a sua implementação tem contornos trágicos para a Ciência em Portugal, além de ser profundamente discriminatória.
Vejamos:
- o regime de contratação não é alterado, não estando previstos nem contratos de trabalho que garantam regalias sociais adicionais de segurança no trabalho e na saúde, nem aumento significativo do valor do subsídio, o qual se mantém inalterado há quase duas décadas;
- não se encontra definida nem regulamentada a articulação entre instituições quando a contratação de um BI é efectuada por instituições de acolhimento que não podem garantir a formação avançada;
- acresce que as exigências de inclusão em acções de formação não contempla o pagamento de inscrição, matrícula e propina, que terão de ser opcionalmente subsidiados pela instituição conferente de grau ou suportados pelos bolseiros, o que lhes retira até cerca de 25% do seu rendimento mensal (já diminuto) no caso da inscrição num programa doutoral;
- a limitação temporal das BPD’s não vai ser a rampa de lançamento para um emprego científico mais estável nem mais diferenciado em Portugal, porque ele é praticamente inexistente quer na indústria, na academia, ou nos institutos de investigação.
As exigências do DL 123/2019 não tornam a carreira científica apelativa. As saídas profissionais para estes estudantes que se ousam lançar numa carreira de investigação, não são visíveis no horizonte.
E é esta a tragédia do sistema científico e tecnológico nacional. Os concursos de BI e BPD a abrir no âmbito de projectos de investigação podem vir a ficar vazios. Não é apelativo para um aluno investir numa formação avançada e num grau académico quando o ingresso numa carreira académica ou científica ou num outro percurso profissional é longínquo e difuso.
Por outro lado, os grupos vêem-se mutilados pelas exigências impostas na contratação de bolseiros (acabada a bolsa, a continuidade no mesmo grupo ou na instituição que lhe conferiu o grau não lhe é permitida), ao perderem as competências em que investiram e geraram na formação de BI´s e BDP´s e nas linhas de actividade que estes bolseiros ajudaram a desenvolver. Os decisores governamentais acenam com a possibilidade regulamentada de contratos de investigação após doutoramento. Mas como estabelecê-los fora do âmbito dos projectos de investigação limitados a 3 anos, quando as instituições são sub-financiadas, e na maior parte dos casos não manifestam interesse em aderir a este regime contratual?
Vivemos um cenário de realidade virtual, em que bolsas se transformam em contratos de trabalho e em que o aumento do financiamento para a Ciência é anunciado para breve. Num cenário que encobre a dura realidade, de perpetuidade do contrato sempre a prazo. Num cenário opaco aos contributos insubstituíveis, dos estudantes e dos jovens investigadores com gosto pela Ciência, para a vida das instituições em que trabalham. Num cenário que lhes omite que lhes está vedada a participação nos órgãos de decisão das instituições que os acolhem e para as quais contribuem de forma relevante, quer nos “rankings” quer na captação de financiamento.
Que futuro para estes jovens investigadores?
E neste contexto, os grupos de investigação no sistema de investigação e tecnológico nacional, continuam a envelhecer sem possibilidade de se rejuvenescerem. Foram apanhados num intrincado percurso com múltiplas reviravoltas e alterações de rumo. Muitos perdem progressivamente a vitalidade e até a capacidade de indignação. O financiamento para a Ciência tarda em aparecer.
Que futuro para o sistema científico e tecnológico nacional?
A Direcção
3 de Junho de 2020